Por que júri foi anulado e quatro réus foram soltos pela Justiça do RS
O incêndio que vitimou 242 pessoas na Boate Kiss, em Santa Maria, no dia 27 de janeiro de 2013, completa 10 anos nesta sexta-feira (27). Os quatro réus pelo caso chegaram a ser condenados em dezembro de 2021, mas a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) anulou o júri após acolher parte dos recursos das defesas.
O julgamento, realizado em agosto de 2022, terminou com o placar de dois votos a um para reconhecer a anulação. Enquanto o relator, desembargador Manuel José Martinez Lucas, afastou as teses das defesas, os desembargadores José Conrado Kurtz de Souza e Jayme Weingartner Neto reconheceram alguns dos argumentos dos réus.
Com a anulação, Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann, sócios da boate, Marcelo de Jesus, vocalista da banda, e Luciano Bonilha, auxiliar da banda, foram soltos no mesmo dia.
Atualmente, o processo está aguarda a conclusão de diligências para que a 2ª Vice-presidência do TJ-RS decida se admite os recursos movidos pela acusação e pelas defesas. Entre eles, estão pedidos de retomada do julgamento na 1ª Câmara Criminal e da prisão provisória dos réus. Se os recursos forem admitidos, eles seguirão para análise do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF).
Nulidades
Entre os principais apontamentos da defesa que foram levados em conta pelos desembargadores estão fatos como:
SORTEIOS: a escolha dos jurados ter sido feita depois de três sorteios, quando o rito estipula apenas um;
CONVERSA COM JURADOS: o juiz Orlando Faccini Neto ter conversado em particular com os jurados, sem a presença de representantes do Ministério Público ou dos advogados de defesa;
QUESTÕES AO JÚRI: o magistrado ter questionado os jurados sobre questões ausentes do processo;
SILÊNCIO DOS RÉUS: o silêncio dos réus, uma garantia constitucional, ter sido citado como argumento aos jurados pelo assistente de acusação;
MAQUETE 3D: o uso de uma maquete 3D da boate Kiss, anexada aos autos sem prazo suficiente para que as defesas a analisassem.
Especialistas consultados pelo g1 explicam que as nulidades do processo alegadas pela defesa se referem a questões ligadas ao andamento e a procedimentos formais que devem ser respeitados durante o julgamento, e não são referentes ao mérito do processo.
“O que aconteceu (…) é a continuidade do julgamento. Houve o júri, que foi a primeira fase, e agora foram analisados os recursos da defesa, que configuram uma continuidade do julgamento, e não uma reversão. Em hipótese alguma os réus poderiam ser absolvidos nessa etapa, pois prevalece a soberania do veredito dos sete jurados. Poderiam acontecer três coisas: a manutenção da sentença inalterada, a redução das penas ou a anulação por força de algum vício processual. Houve um entendimento pela terceira hipótese”, explica Mauro Stürmer, professor da Faculdade de Direito de Santa Maria (Fadisma).
O desembargador Manuel José Martinez Lucas, relator dos recursos e presidente da sessão, informou que foram apresentados pelos advogados de defesa 19 pedidos de nulidade. O relator desconsiderou todos os pedidos, mas acabou vencido pelos votos dos outros dois desembargadores, José Conrado Kurtz de Souza e Jayme Weingartner Neto, que reconheceram alguns dos argumentos dos réus.
O que dizem especialistas
Um dos termos usados pelos desembargadores que votaram a favor da anulação foi a “quebra da paridade de armas”. O advogado e professor de Direito Márcio de Souza Bernardes, da Universidade Franciscana de Santa Maria, explica que em casos em que há Tribunal de Júri, é garantida a plenitude de defesa, conceito mais abrangente do que a ampla defesa, garantida em outros tipos de processos.
“Significa que o réu pode utilizar de todos os argumentos e instrumentos da lei para se defender. E um desses instrumentos é ser julgado por seus pares, pessoas leigas, que devem fazê-lo de forma livre, sem qualquer indução”, aponta Bernardes.
Nesse sentido, fatos como uma conversa entre o juiz Orlando Faccini Neto e os jurados, além de uma menção do assistente de acusação ao silêncio dos réus – algo garantido por lei, que não pode ser citado durante a argumentação aos jurados como fator depreciativo do réu – foram pontos levados em consideração.
Felipe de Oliveira, advogado e professor de processo penal da Escola de Direito da PUCRS, explica também que o Código de Processo Penal (CPP) prevê que o tribunal do júri deve ser composto por 25 pessoas, grupo do qual são sorteadas sete pessoas, que serão os jurados. Cada parte tem direito a rejeitar três jurados sem justificativa e a apontar impedimentos – como relação com alguma vítima ou algum acusado, interesse no processo ou manifestação prévia sobre o fato julgado.
No julgamento do Caso Kiss, foram chamadas mais do que as 25 pessoas previstas e foram realizados três sorteios para a formação do grupo de jurados, o que não está previsto no CCP. O último desses sorteios aconteceu cinco dias antes da sessão do julgamento, quando a previsão legal é de que ocorra entre 15 e 10 dias úteis antes da sessão.
Outro fato remete ao uso, pelo Ministério Público, de uma maquete em 3D da boate Kiss. Feito digitalmente, o modelo foi juntado aos autos em um arquivo que não era facilmente aberto pelos advogados de defesa, por ser salvo em um formato pesado para computadores comuns. Quando conseguiram acessar a maquete, as defesas questionaram a verossimilhança do modelo em relação à boate, e a imagem 3D foi usada no processo, de acordo com os argumentos apresentados, sem que houvesse prazo para que as defesas analisassem o seu conteúdo.
Voto dos desembargadores
O relator, desembargador Manuel José Martinez Lucas, afastou todas as nulidades questionadas pelas defesas. Nulidade é uma sanção imposta quando um ato não cumpre as formalidades estabelecidas pela lei.
Entre os argumentos negados, foram os de que o juiz teria agido de forma parcial no júri, de que teria havido excesso de linguagem e quebra da paridade de armas entre acusação e defesas no uso de maquete digital pelo Ministério Público. Para o magistrado, um julgamento da magnitude como o da Kiss não poderia ser anulado por questões que não tiveram relevância para o resultado.
O desembargador José Conrado Kurtz de Souza votou favoravelmente a algumas nulidades. O magistrado mencionou o sorteio dos jurados e atos do juiz na condução do júri. Último a votar, o desembargador Jayme Weingartner Neto reconheceu cinco nulidades principais.
Por g1