É nítida a interferência desarmoniosa de um Poder soberano no outro
Mais uma vez o Brasil acompanha casos jurídicos icônicos que nos levam a profundas reflexões acerca dos desequilíbrios entre os Três Poderes da República. Em pauta estão a anulação do decreto presidencial de indulto concedido ao ex-deputado federal Daniel Silveira e a cassação do mandato de deputado do ex-procurador da República lavajatista Deltan Dallagnol. O primeiro pelo STF (Supremo Tribunal Federal) e o segundo pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral), braço do próprio Supremo, responsável por julgar causas relacionadas ao Direito Eleitoral.
No caso Silveira, o STF (por maioria) entendeu que houve desvio de finalidade quando o Chefe do Executivo concedeu o benefício de indulto ao então deputado. Isso porque este último seria aliado do primeiro e isso, de acordo com a ministra relatora, afrontava o entendimento prevalente de que a concessão do benefício deve respeitar normas e seguir o intuito de sua criação. E é por esse motivo que o Supremo, no entendimento dos ministros, pode verificar a legalidade do ato, validando-o ou não.
Em outras palavras: quem decide é o Supremo, pois o que a Corte não quer, não vinga!
Modéstia às favas, ao meu ver, a decisão do colegiado foi uma inovação ao texto legal constitucional, o que vai além dos limites de sua atuação. E digo isso, mesmo se considerarmos o seu “papel contramajoritário”. Até porque, atos benéficos semelhantes já foram praticados por outros presidentes no passado (vide: Dilma Rousseff e José Dirceu), permanecendo o STF inerte, justamente por se tratar de prerrogativa constitucionalmente atribuída ao Presidente da República.
Com o devido respeito, a questão “Daniel Silveira” não tem a relevância necessária para autorizar o STF a atuar de forma tão extrema para defender as regras do jogo democrático e os direitos fundamentais.
Não vamos aqui, entrar em discussões sobre o originalismo ou o textualismo na análise das normas constitucionais, mas podemos nos escorar no que (acertadamente) já disse o ministro Roberto Barroso, ao pontuar que essa competência do STF deve ser exercida com cautela, pois a Corte não pode se omitir quando se trata de defender direito fundamental ou “interesse relevante da sociedade“.
E é justamente isso. No caso específico, a bem da verdade, o desvio de finalidade não foi do Poder Executivo, mas do Judiciário, que tomou para si a prerrogativa de desautorizar as outras duas Casas em qualquer situação, pois cá entre nós, indultar ou não um deputado federal jamais foi algo de relevante interesse da sociedade.
Ou seja, essa questão nunca mereceu atuação tão excepcional do Supremo, que ao se valer de poderosa ferramenta de sobreposição aos outros Poderes, aniquilou um ato presidencial constitucionalmente previsto, e aqui me valendo de palavras de Lenio Streck, com ares de “neutralidade e objetividade, mas que na verdade são meras posições políticas (no pior sentido) disfarçadas”.
Essa nítida interferência desarmoniosa de um Poder soberano no outro, com escora nos papéis contramajoritário e representativo do STF, torna-se perigosa quando não usada apenas como última medida por aqueles que estão investidos de traduzir a Constituição, mas não de interpretá-la de forma extensiva e conjectural ou recriá-la de acordo com o momento político do país.
Esse cenário faz emergir uma fenda em nosso Estado Democrático, pois a admiração por nossos ministros do Supremo, a cada dia, vai sendo substituída pelo medo de represálias ao livre pensamento.
E por fim, no caso do ex-procurador Deltan Dallagnol, não é diferente. Apesar de eu não concordar com a sua atuação frente aos processos da Operação Lava-Jato, pois houve sim muitos excessos, não posso aplaudir esse erro gravíssimo de entendimento legislativo do TSE, que inovou ao desconsiderar qualquer possibilidade (futura) de arquivamento das representações existentes contra o agora ex-deputado “lavajatista” que, saliente-se, não tinha, no momento da sua candidatura, nenhum processo formal em seu desfavor. Apenas reclamações “escritas”, que poderiam ter sido feitas por qualquer pessoa, e que por isso poderiam ser pertinentes ou não, pairavam contra o ex-parlamentar. Aliás, como já dizia o incontestável ex-ministro do Supremo, Celso de Mello, sempre reto em suas análises, uma representação nada mais é do que uma “expectativa de direito”.
Deltan foi sim punido por vingança, pois não se penaliza alguém com fundamento em algo futuro, que ainda não aconteceu, e que ninguém pode afirmar que um dia, quem sabe, viria a acontecer.
Quando há apenas essas expectativas (futuras e incertas), a moralidade administrativa não é atingida. Por isso, o TSE não poderia ter abdicado da presunção de não culpabilidade do ex-procurador e interpretado a legislação da forma mais conveniente para o momento.
E assim nós seguimos, receosos, tentando acreditar em nosso Supremo Tribunal, pilar mais robusto de nossa jovem democracia, mas alertas, e lembrando diuturnamente das palavras de Couture: “Teu dever é lutar pelo Direito; porém, quando encontrares o Direito em conflito com a Justiça, luta pela Justiça”.
Por Leonardo Watermann é advogado criminal
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