A culpa é nossa também

Entenda como as ações humanas interferem na crise hídrica

Os desafios da sobrevivência na seca serviram de narrativa para clássicos da literatura brasileira, como Vidas Secas, de Graciliano Ramos, Grande Sertão Veredas, de João Guimarães Rosa, e Os Sertões, de Euclides da Cunha. Nos últimos meses, o avanço da crise hídrica no Brasil mostrou como os efeitos da estiagem prolongada podem ir além do sertão – de acordo com o Ministério de Minas e Energia, esta é a pior crise hídrica dos últimos 91 anos. De acordo com um levantamento recente feito pelo MapBiomas, o Brasil perdeu 15% da superfície de água nos últimos 30 anos. Em 2021, a falta de chuvas fez com que os reservatórios de algumas das principais hidrelétricas do país chegassem a níveis críticos.

As regiões mais afetadas pela estiagem são o Sudeste e o Centro-Oeste. Os reservatórios que abastecem essas regiões, que acumulam 70% da geração de energia em âmbito nacional, estão com aproximadamente 23% da capacidade total de armazenamento. O nível é inferior ao registrado em agosto de 2001, quando o Brasil teve de implementar um racionamento de energia devido à falta de água.

De acordo com Cássio Bernardino, coordenador de projetos da ONG WWF-Brasil, a crise hídrica é um tema que volta com frequência à rotina dos brasileiros porque, em função das alterações que o homem causou no meio ambiente, já existe um cenário de mudanças nas condições que eram consideradas normais, como água abundante e chuva todos os anos. “Em alguns lugares, a água está reduzindo. Em outros, a chuva fica mais concentrada. Consequentemente, estamos percebendo a diminuição no volume dos rios”, explicou.

Efeitos do clima na crise hídrica

O desmatamento é uma das principais causas das mudanças no regime de chuvas. Foto Divulgação

Da mesma maneira como a ocorrência de chuva é um fenômeno que depende de condições climáticas, a ausência dela também está relacionada ao clima. De acordo com Bernardino, a alteração no padrão de chuvas foi provocada por ações antrópicas – aquelas causadas pela espécie humana –, principalmente as relacionadas com mudanças climáticas, como o desmatamento e a emissão de gases de efeito estufa. “A alteração no equilíbrio ambiental tem provocado a menor disponibilidade de água”, disse.

Enquanto a diminuição de chuva é medida por índices pluviométricos, o estudo do MapBiomas analisou a superfície de água no país. Isso significa que comunidades que dependiam das margens de rios para tirarem seu sustento e se locomoverem não têm mais aquele curso d’água. No Pantanal, lagoas secaram e muitas áreas deixaram de ser úmidas. “Ao desmatar a Amazônia, o centro-oeste do país recebe menos chuvas. Hidrelétricas afetam o regime de vazão dos rios, o que deixa algumas regiões mais secas”, afirmou Bernardino.

Busca por soluções para a crise hídrica

Para tentar driblar a crise, o governo implementou algumas medidas. Entre elas, há a previsão de leilões para contratar usinas “reservas” de geração de energia, o aumento da importação de eletricidade da Argentina e do Uruguai e a flexibilização dos limites de segurança das linhas de transmissão para levar maiores volumes de água (e, portanto, mais energia) das regiões norte e nordeste para o Sudeste e Centro-Oeste.

Empresas e cidadãos estão sendo incentivados a reduzir o gasto de energia elétrica. Em troca de compensação financeira, grandes consumidores (a exemplo da indústria) poderão mudar seu consumo de energia para fora do horário de pico. Segundo o ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, será colocado em prática um programa para estimular a redução voluntária do consumo, com direito a desconto na conta de luz para os adeptos. Repartições públicas terão que poupar entre 10% e 20% de energia.

Outra saída é o acionamento de usinas termelétricas, cujo processo de geração de energia é mais caro, poluente e, portanto, agrava a crise climática. Em junho, o presidente Jair Bolsonaro publicou uma medida em que autorizou, “em caráter excepcional e temporário”, condições regulatórias especiais para utilizar essas termelétricas sem contrato por até seis meses, prorrogáveis. Um dos maiores objetivos do governo é evitar que o Brasil passe por apagões ou tenha que recorrer ao racionamento compulsório de energia.

Na Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados no dia 16 de agosto, o ex-presidente da Agência Nacional de Águas, Vicente Andreu, afirmou que a crise hídrica atual é fruto de uma “ação irresponsável” do ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico), sugerindo que o órgão deveria ter acionado as termelétricas mais cedo como forma de minimizar os efeitos da falta de chuva nos reservatórios de hidrelétricas. Assim, a situação decorreria não apenas de uma condição climática, mas também da má gestão de recursos públicos.

Impacto social da crise hídrica

Enquanto se tenta contornar o problema, o pequeno consumidor será o principal prejudicado: o gasto será maior com a tarifa de eletricidade em casa e com os preços elevados de produtos nos supermercados. O agronegócio, que produz proteína animal, grãos, legumes e alimentos em geral, depende do volume de chuvas. Com a escassez hídrica e o aumento na conta de luz, tudo fica mais caro.

Segundo o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, o aumento do preço da energia elétrica pressionará a inflação ao longo dos próximos meses, o que prejudicará ainda mais a situação econômica brasileira. A bandeira tarifária deve continuar aumentando e pesar ainda mais no bolso do consumidor.

Saída sustentável para a crise hídrica

Em contrapartida, a procura pela energia solar, mais sustentável e barata do que a hídrica, aumentou. Atualmente, o uso residencial representa 72,6% dessa matriz no Brasil. A crise hídrica pode incentivar a busca por alternativas verdes e trazer ganhos no futuro para o país.

De acordo com Bernardino, do WWF-Brasil, é necessário compreender a escassez hídrica como uma crise ambiental global. “É fundamental que enfrentemos as mudanças climáticas. Precisamos acabar com o desmatamento no país, a maior fonte de emissões no Brasil, e restaurar áreas que foram desmatadas para retirar o carbono da atmosfera, além de adotar modelos de geração de energia que sejam limpos”, disse. Além disso, o país precisa investir em energias verdes, como a solar e a eólica. “A solução é integrada, ou seja, ela não virá só de um estado ou país. A crise hídrica e o aquecimento global são interconectados, um alimenta o outro”.

Por Jennifer Ann Thomas – Guia do Estudante