Meu cotidiano de desimportâncias

Aqui tenho passado os dias lavando telhas, fazendo capina, rastelando folhas pelo quintal e aparando o gramado. Sou como um Jardineiro Fiel, trabalhando resignado, distante do burburinho do mundo, em luto, esperando a chegada de alguém que jamais retornará.

Enquanto trabalho, ouço pelo dia inteiro as cigarras incansáveis com suas sinfonias sem fim, cantam em grupos, cantam umas para as outras. Me surpreende saber que tem gente que não suporta cantigas de cigarras. Como aqui não tenho rádio, não ouço músicas e nem televisão assisto, sinto-me como alguém privilegiado diante da grande sinfônica composta por uma centena de instrumentistas orquestrada por um maestro de gestos e mãos agitadas!

As mangas amadurecem e os macaquinhos chegam todas as manhãs para o lanche, dão duas ou três mordidas na bundinha dessas mangas e as descartam lá do alto, jogam fora e pegam outra. São uns desperdiçadores costumazes. Se aproveitassem uma manga inteira, teriam a nutrição necessária por um dia todo. Esses bichinhos alimentam-se experimentando sabores e pequenas diferenças no adocicado das mangas. Por isso, as descartam, gostam mesmo de desperdícios, traquinagens e folias, apreciam o som de mangas impactarem-se no chão!

Temos que ter o devido cuidado para não levar uma dessas sobre nossas cabeças ao passar por debaixo dos pés de mangas.

As jacas se esborracham no chão de maduras ou mesmo derrubadas pelos macaquinhos. O cheiro dessas grandes frutas maduras exala pelo quintal. Quintal cheira o adocicado de jacas maduras. Deve ser o cheiro característico dos bosques da Índia, já que as jacas e mangas vieram de lá. Buda, o Iluminado, há quatro milênios e meio atrás, deve ter sentido os mesmos cheiros, que hoje, sinto por aqui, deve ter desfrutado da mesma paz que sinto debaixo de meu pequeno bosque.

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A noite os sapos inundam nossos ouvidos com seus coaxares. Foto Pixabay

De manhã, muitas vezes me pego imitando os macaquinhos, alimento-me de jaca na minha primeira refeição e no horário do almoço o cardápio são mangas maduras. Descasco e corto-as num prato e já me dou por satisfeito com o almoço de mangas. No entanto, nesses dias, janto um pouco mais cedo… É certo que, Sidharta Gautama, deve ter se alimentado, inúmeras vezes, da mesma maneira.

Estamos nas semanas das primeiras chuvas ininterruptas a lembrar as monções indianas e então surgem as revoadas e as nuvens de cupins nos finais de tardes e inícios de noites, os sapos fazem a festa e engordam.

Durante o dia, antes ou depois de uma chuva leve, são as tanajuras com seus bundões avantajados que chegam voando e ao cair no chão úmido procuram cavar rapidamente suas pequenas tocas para se protegerem dos bicos certeiros dos pássaros e galinhas que fazem a festa, a gente os vê bicando o chão em ziguezagues rápidos, catando indefesas tanajuras. As tanajuras cavam e rapidamente se escondem para se protegerem e também para procriarem.

Tivemos uma semana de muita chuva e pouco trabalho e a terra agradecida pela oportunidade de se renovar presenteia os pastos com um verde generosamente escuro, todos os brotos eclodem viçosos. Lá embaixo, o Jaó pia solitário todos os dias dentro da mata da reserva que margeia o pequeno córrego. Seu piado triste e repetitivo nos faz lembrar um mantra e nos trazem também a sensação de solidão, de distanciamento da civilização ou talvez de uma saudade pungida que não sabemos, bem ao certo, definir do que ou de quem seria, talvez seja mesmo melancolia perdida e indeterminada. Sentimentos confusos que a alma sente, mas não decifra.

As chuvas encharcando a terra, pintou tudo de verde nos mais variados tons… A flora se tornou exuberante e as frutas se apressam em amadurecer e a tomar aspectos de sol.

A noite os sapos inundam nossos ouvidos com seus coaxares, seus cantos chegam de todas as direções como se o mundo fosse um imenso pântano e daqui a pouco começo a vê-los aos pulos, saem de seus esconderijos fresquinhos para se alimentarem de besouros, cupins e outros pequenos insetos. É de manhã que se vê seus cocozinhos escuros pela varanda e pelo quintal. Mas devo confessar que também encontro uns montinhos pela casa.

Uma profusão de bem-te-vis, sabiás, joões-de-barro e rolinhas que cantam ocultos no arvoredo do sítio, encantam nossos ouvidos e nossos olhos. Há muita vivacidade no ar, estão num vai e vem frenético fazendo ninhos, alimentando filhotes, flertando, acasalando ou se alimentando de frutas, minhocas ou insetos. Vejo-os ora voando, outras vezes no chão ou de galho em galho por todas as árvores do entorno da casa. Um casal de sabiás fez um pequeno ninho sobre a parede do lavabo, chocaram dois ovinhos. Me senti presenteado por esse mimo da natureza. O casal de sabiás vivia em brigas recorrentes com os bem-te-vis que espreitavam seus filhotes. Bem-te-vis são predadores implacáveis. Felizmente nasceram dois filhotes, vi um deles saindo em voo inseguro pelo telhado inconcluso e o outro dando pequenos voos por dentro de casa. É o ciclo abençoado das gerações.

Logo bem cedo, os papagaios e as araras cruzam os céus, de um lado para o outro, com seus diálogos estridentes. Tudo aqui é movimento numa profusão de pequenos seres, vidas celebrando a existência.

Esse tem sido o meu cotidiano povoado de desimportâncias, como diria nosso menino poeta Manoel de Barros.

Aqui nesse pedacinho do pequeno vale do Senhor, as vezes paro e reflito quando estou a descansar sob as copas das árvores daqui do sitio, debaixo dos pés de manga mangarita ou das goiabeiras, rodeado de pequenos animais e galinhas soltas, pisando num chão vermelho, me ocorre que talvez eu nunca tenha deixado os quintais de minha infância, quando andávamos descalços pelo terreiro. Até parece que apenas dei um drible no tempo, pisquei os olhos ou mesmo deitei para dormir numa noite de minha infância e amanheci nesse agora, aqui no sitio. Só mudei de lugar e trago um olhar um pouco mais cansado à procura de Deus…

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Precisamos, cada um a seu tempo e em seu lugar, cumprir a jornada. Foto Spencer Selover

Quando como goiaba, colhida no pé como fiz hoje, lembro-me de nosso quintal lá no distrito de Jatobá, lembro-me também daquele pé de goiaba da casa da rua Amazonas onde nasci.

Já estou caminhando para os sessenta anos, dando início a última fase da minha vida sobre a terra e continuo vivenciando aqui no meu sitio os meus primeiros anos de existência, os tempos de criança.

A vida parece uma elipse, abre e fecha ciclos e gira em círculos ascendentes, quando pensamos que estamos indo para longe, na verdade, estamos fazendo o caminho de volta para casa.
Diversos pequenos prazeres tenho por aqui, que é o rastelar e limpar o quintal, colher mangas todos os dias, muitas vezes retirando direto dos próprios galhos da mangueira e recolher ovos que uso na minha alimentação ou roçar a gramado. Quando estou roçando a grama, essa, exala um cheiro de frescor que é muito bom, o cheiro inefável de vida!

Um sentimento de profunda gratidão perpassa minha mente quando sento numa cadeira de descanso e observo o imenso quintal, as árvores, os pássaros, a brisa que me refresca o corpo e a casa que continuo erguendo feito um João de Barro que em vez de asas tem pés de tartaruga. As vezes penso e acalento, por não estar muito bem de saúde, para que nada de ruim venha acontecer comigo antes que eu termine a reforma da casa. Não quero deixar problemas para ninguém.

O chato mesmo, meus prezados, é cozinhar somente pra si e comer sozinho. Bem, acho que estou faltando com parte da verdade, pois tenho um cachorrinho também e com ele divido o alimento. E não é que o safadinho aprendeu a comer cupins junto com os sapos?! Nessas últimas noites em que os cupins se juntam ao redor das lâmpadas acessas e como magnetizados caem tontos ao chão, o cachorrinho se junta a diversos sapos de todos os tamanhos para comer os cupins! Cupins são uma fonte privilegiada de proteínas. O que percebo é que ele não gosta é das asinhas deles. Parecem celuloses indigestas. Ele as refuta.

Essas são minhas companhias recorrentes e meus próximos, essas pequenas multidões de pequenos seres preenchem de vida os meus dias e noites. Estou feliz de partilhar com eles o mesmo espaço.

Vida longa a todos esses pequenos seres!

Afinal, se estamos aqui, é porque somos importantes. Portanto, somos todos necessários.

E com o tempo percebemos que não importa tanto quem chega, quem fica ou quem parta, mas que acima de tudo, existimos e precisamos, cada um a seu tempo e em seu lugar, cumprir a jornada, precisamos continuar resolutos na trilha de nossas peregrinações…

Abílio Borges