Inácio

Tive um funcionário que era alcoólatra, um homem muito trabalhador e bondoso.

Trabalhava duro o mês todo, mesmo tendo uma hérnia dolorida e inchada entre as pernas que o incomodava grande parte do tempo. Tinha diversos dentes estragados em sua boca. Seus dentes remanescentes, verdadeiros caquinhos cor de carvão, permaneciam resistentes a qualquer tipo de planejamento para tratá-los que, tanto eu como minha esposa, oferecíamos a ele.

Quando ele sorria, virava levemente o rosto e o inclinava para baixo de maneira a esconder seus dentes estragados. Outras vezes levava uma das mãos à frente do rosto para esconder àquilo que sentia vergonha, caso aparecesse à contemplação alheia. Pensava eu como era ruim, constrangedor viver daquela maneira. Sentir vergonha de si mesmo! Ele vivia sorrindo e escondendo o próprio riso.

Apesar da vida de trabalho duro, de dificuldades do cotidiano, mantinha uma postura bem humorada perante a vida, fazia troça e gostava dos trocadilhos de duplo sentido. Espirituoso, fazia piada e graça com tudo. Gostava de imitar os travestis de maneira a fazer rir seus interlocutores, que podia ser qualquer um que estivesse perto dele.

Gostava de aplicar apelidos engraçados em todas as galinhas ou cachorros que haviam no sítio. Gostava também de colocar apelidos nas pessoas. Eram apelidos que denotavam alguma característica pessoal engraçada e que, invariavelmente, pegava na pessoa.

Por outro lado, falava de seu desgosto com a filha mais velha, de apenas 14 anos, que se prostituia, que falava palavrão e era incentivada pela mãe, dependente química. Oferecia a menina aos idosos do bairro por 20, 30 ou mais reais. Dez reais por uma bolinação rápida. Qualquer quantia valia quando tinha que lidar com suas crises de abstinência do maldito crack. Sua mãe era sua promotora no mercado negro, a cafetina de sua própria desgraça…

Falava com orgulho da filha caçula que era obediente e tirava boas notas na escola. Essa filha caçula era muito afetuosa com ele, nos almoços em família era àquela que lhe entregava o prato servido em suas mãos e sempre o defendia perante a família. Recebia o apelido carinhoso de puxa saco do papai…
Ele acreditava que essa filha estaria a salvo da influência maligna da mãe, sua ex mulher, de quem ele nutria muito medo, já havia escapado de inúmeras tentativas de esfaqueamento ou pauladas fatais.

Essa sua ex mulher era uma achacadora profissional, boca suja, intimidava as pessoas com ameaças para arrancar delas algum trocado ou mesmo um favor forçado. Tinha como trunfo a truculência, o deboche, o escárnio, o falar alto com as pessoas e o conhecimento das mazelas pessoais de suas vítimas, as quais, por conta da própria maldade, ela sempre aumentava com exageros desmedidos. Quando não tinha conhecimento de algum pecadilho, inventava com a maior facilidade, caluniava e esculachava. Até a polícia tinha ela como caso perdido.

Tinha mais dois filhos adolescentes que, perceptivelmente, eram muito rebeldes. Certamente, guardavam a revolta pelo mal exemplo do pai e da mãe que eram protagonistas dos maiores vexames mensais na comunidade. Perderam a conta dos escândalos, de quantas vezes foram à rua buscar e arrastar os pais bêbados e metidos em todas as confusões e brigas possíveis.

Nunca o vi protelar trabalho a ser feito ou mesmo demonstrar algum tipo de preguiça. Sorridente, vivia sempre bem disposto. Quando estava cansado, falava da preguiça como se fosse uma piada engraçada. Nos dias de pagamento, eu o levava para a cidade, geralmente num sábado.

Ele passava, então, o final de semana no bairro aonde moravam a maioria dos seus filhos, na casa de uma avó das crianças.

Sua ex mulher, alcoólatra e dependente química, era mãe de quatro de seus filhos. As crianças foram geradas após noitadas de porres homéricos, pois nunca moraram juntos. Tinha filhos também com outra mulher que nunca conheci.

Então, quando chegava no bairro, pagava sorvetes, comprava refrigerantes, biscoitos e fazia a vontade de todos eles. Passava parte de seu salário para a avó das crianças, como uma pensão informal para ajudar nas despesas.

Fora isso, ele tomava toda a bebida alcoólica do bairro. Pagava bebida e dividia cigarros com todos os demais bêbados incorrigíveis da região. Muitos deles, como crianças adoentadas, esperavam ansiosos e trêmulos, a vinda mensal dele ao bairro para poderem encher a cara. Notava que nessas oportunidades em que pagava cachaça para os outros, sua voz adquiria uma certa autoridade, como um general, cujos ditames eram aceitos sem nenhuma oposição ou resistência pelos seus dependentes. Ali quem comandava era ele como gostava de dizer aos demais, os seus comandados…

Permanecia bêbado todo aquele final de semana, como um velho gambá. Bebia tanto que dormia nos bancos da praça do bairro por não achar o caminho de volta à casa da ex sogra e avó das crianças, uma senhora aposentada que costurava para a vizinhança como maneira de aumentar sua escassa renda para alimentar tantos netos e netas.

Muitas vezes, no auge da bebedeira, era roubado pelos mais lúcidos, pelos espertos e mal intencionados, que à maneira dos predadores, esperavam o momento oportuno para atacar e surrupiá-lo.

Havia diversos malandros na vizinhança que, nas suas dificuldades, lhe aplicavam golpes para arrancar-lhe dinheiro, preparando-lhe pequenas ciladas.

Era comum vê-lo bêbado nas noites de sábado e, lá pelas adiantadas horas da noite, via-se ele comendo um sanduíche de um dos trailers da praça. Comia como os porcos comem, a comida caindo à direita e à esquerda da boca, se lambuzando e com a boca cheia, soltava palavras incompreensíveis que só ele mesmo sabia seus obscuros significados. Era uma cena deplorável, para não dizer repugnante.

Como não tinha casa na cidade fazia da praça local o seu próprio lar. Nela ele bebia, ele urinava, defecava e dormia. Convertia os bancos de concreto em uma cama macia. O álcool se encarregava de amaciar a rigidez do concreto. Lá ele recebia os amigos, os marginalizados, os bêbados e os dependentes químicos e quando ficava sozinho, levado por seus delírios alcoólicos, conversava com as árvores ou com figuras imaginárias. Muitas vezes era visto sozinho, como triste remanescente, cantando, fazendo discursos aos ventos, discutindo acaloradamente consigo mesmo, e por vezes, viam-no murmurando lamentações e chorando curvado sobre si mesmo…

Aquela praça era o palco de seus dramas e os transeuntes a plateia involuntária de sua tragédia. Ali a sua danação era absoluta e completa!

Ao buscá-lo, na segunda-feira, para retornarmos ao sitio, parecia que o mesmo havia tomado uma surra de tão amassado estava seu rosto. Seu corpo exalava um cheiro de pura cachaça, falando coisas desconexas e já, totalmente, sem nenhum dinheiro nos bolsos. Geralmente estava vestido com roupas que não eram suas, mas que passavam a ser de sua propriedade dali por diante.

Entrando no carro e com voz pastosa, típica dos bêbados, se despedia dos filhos que permaneciam no portão da casa com olhos tristes e chorosos. Mesmo em visível estado de embriaguez, antes de saímos aconselhava os filhos de maneira quase patética, pedindo para que obedecessem a avó deles até que voltasse no mês seguinte. Falava, esforçando-se de maneira a empostar a voz, para que transparecesse portadora de alguma moral. Ele e a mãe de seus filhos eram a parte visível da insolvência quase completa daquela pobre família.

Ele, já dentro do carro, olhava em minha direção e só então parecia notar, realmente, a minha presença. Me cumprimentava e pedia para que eu comprasse cigarro ou fumo. Havia gasto de maneira dissoluta, em menos de dois dias, cada centavo de seu salário a ponto de não ter como comprar sequer uma carteira de cigarro.

Lá ia eu no supermercado comprar cigarros ou fumo, antes de partirmos para o sítio.

Passou quase um ano trabalhando no sítio. Não juntou nenhum centavo. Ganhava um salário mínimo livre, ou seja, toda a alimentação, remédios e cigarros por minha exclusiva responsabilidade financeira. Sabem, esse valor indigno, era muito para ele…

Segunda-feira era um dia que ele não trabalhava tamanha era sua ressaca.
Eu o permitia ficar na rede, na sombra de uma árvore, onde ele dormia a tarde inteira. Geralmente, não jantava na segunda-feira. Eu o acordava, no final de tarde, para dormir no seu quarto. Comia somente na manhã seguinte. Tomava um banho e voltávamos ao trabalho duro.

Sua maneira de trabalhar me estimulava a ceder aos seus deslizes profissionais.

Depois de um tempo, foi trabalhar com um filho meu e encerrou sua relação trabalhista, porque não quis ficar em quarentena no sítio tão logo instalou-se a pandemia. Quis ficar na cidade e se expor. A carência por bebida foi mais forte e ele permaneceu em sua fraqueza, abatido por seu vício doentio.

Ontem, fiquei sabendo, por um dos bêbados do bairro que se dirigiu a mim, dizendo se lamentar pelo companheiro que estava entubado por causa da Covid-19.

Certa vez, ele me explicou que seu alcoolismo começou quando sua mãe morreu. Eles moraram juntos, somente os dois, por muitos anos. Então, talvez por solidão e tristeza, consumido por uma depressão incurável, ele passou a beber. E bebia, numa proporção absurda, que acabou bebendo a própria casa que herdou da falecida.

Dizia sentir muitas saudades da sua mãe…

Fiquei extremamente triste e preocupado com a vida desse ex companheiro de trabalho. Sei que ele está inconsciente. Seus sentidos estão entorpecidos como acontecia, quando tinha seus inumeráveis comas alcoólicos. Tomara que não sinta dor.

Deus possa ter misericórdia dele, que se compadeça de sua vida, fazendo-o forte.

Semanas atrás, encontrei-o, num caixa de supermercado, ao lado de uma criança sua. Pediu que eu comprasse para ele uns pirulitos e disse que um dia pagaria. Pediu também, quase sem esperança, uma garrafa de fernet, uma bebida alcoólica barata. Comprei-lhe o que me pediu e uma barra de sabão, uma buchinha para lavar louças e uma carteira de cigarro. Ele contava moedas na palma de suas mãos.

Saiu do supermercado quase beijando meus pés, repetindo, quase sem parar, uma infinidade de muito obrigados.
Era uma sexta-feira e ele estava com a roupa toda respingada de tintas de diversas cores. Disse que estava trabalhando no ramo de pintura de casas. Perguntou se minha esposa estava bem. Respondi que sim, estava tudo bem. Mandou-lhe um abraço, que eu respondi que seria entregue.

Entrei no carro comovido com sua humildade, sua gratidão e com seu desejo verbalizado de que Deus me abençoasse. Eu também o abençoei…

Entrei no carro e voltei para o sítio pensando nele e no quanto se encontrava fragilizado e desorientado. Refletir sobre a vida dele sempre foi muito doído para mim…

Precisava escrever, colocar para fora essas tristezas que se tornaram tão comuns nas nossas vidas nesses dias sombrios de fascismo e pandemia.

As pessoas estão do nosso lado e daqui a pouco, num piscar de olhos, sem qualquer aviso prévio, somem como fumaça, desaparecem para sempre de nossas vidas.

Mesmo sendo um homem maltratado pelo destino, pelas relações injustas e por si mesmo, Deus o beneficiou com misericórdia e graça!

Recebi a boa notícia, de que, depois de semanas entubado, ele ressurgiu curado! Como uma fênix ressurgida das próprias cinzas ele renasceu novamente e tem agora a oportunidade de escrever uma nova história e de viver uma vida plena com sabedoria e gratidão.

Ouvi dizer que agora faz piada dos próprios sofrimentos pelos quais padeceu. Continua sempre sorridente, brincadeira à parte, exorta os amigos para que se cuidem, para que não vacilem diante desse maldito vírus que quase o matou e que já dizimou, infelizmente, milhares de outras vidas no Brasil e no mundo.

Inácio era o seu nome e ele sempre foi um homem trabalhador, um homem bondoso, um homem que delirava frente à sua própria tragédia, e que estando frente a frente com a morte, a distraiu com sua espirituosidade e graça e retornou para alegrar os amigos e acalmar o coração de seus filhinhos.

Vida longa a esse homem trabalhador, a esse filho de Deus, minha alma exulta pela vida de Inácio!

Abílio Borges