Trabalhando na terra, com o rosto crestado ao sol, suando, empoeirado e tomando chuvas contínuas, o homem bruto do campo, talvez, não tenha boa sorte com as mulheres. Para elas, o homem tem que estar limpinho e cheiroso. É certo, por justiça dizer que há exceções. No entanto, muito embora se higienize cotidianamente, não anda perfumado com a essência de flores e de rosas. Extrai seu perfume da água que irrompe de seus poros, do limo escorregadio do óleo de seus suores constantes.
Quando chove seu aspecto é lamentável, o barro sobe-lhe pelos pés e pernas, parece com uma escultura de lama, assemelha-se ao primeiro homem de barro, esculpido pelas mãos do Criador, antes de soprar-lhe o fôlego da vida em suas narinas.
Vive como se vivia no início dos tempos, quando não havia fronteiras sobre a terra, quando havia árvores sobre todos os prados, quando os homens peregrinavam como as manadas, se banhando e bebendo água de rios, caminhando de lugar a lugar, sem parada, sem destino, sem pátria.
Sua comida são frutas que as mãos generosas das árvores lhe dão, são doces espigas a lembrar os cabelos dos ruivos, são as raízes macias que o chão desenterra e dispõe em sua boca faminta, o tempero do seu arroz contém grãos dessa mesma terra que adicionam o ferro ao seu sangue e o calcário aos seus ossos doloridos.
Quanto a minha pessoa que é um desses, cheiro terra molhada, tenho aspecto de pedra esquecida ao lado de uma poça na beira da estrada, cheiro morrinha de cachorro de rua, moro numa caverna inconclusa plantada no meio de um bosque de árvores.
Nesse meu estilo rupestre de vida, entre sapos e cobras, visitado por lobos e macacos, acordado pelos galos e sabiás, nesse cotidiano suado e largado, não tenho nenhuma chance com as mulheres. Vivo em situação de terra, como refugiado do campo, existo em situação de mata virgem, meu rosto tem aspecto de rocha escura recoberta por musgos úmidos.
Como estou inapropriado para o consumo e gostos femininos, estou mais para flertes com árvores. Temos até algumas intimidades. Recosto-me nelas quando estou muito cansado, refresco-me debaixo de suas frescas, alimento-me de seu hálito, e, de vez em quando, roço minhas costas em seus troncos quando me atormentam as coceiras ou os ferrões das mutucas e pernilongos. Acho mesmo que vou namorar com elas, talvez dê certo e quem sabe até me case com uma amoreira.
Meses atrás, lá pelas securas de agosto, diversas árvores de ipês floriram para mim, muitas se adornaram de um intenso amarelo assemelhando-se às telas de Van Gogh, outras de roxo e mais algumas de branco. Ficaram lindas e até tive a impressão de que flertavam comigo.
Confesso, que, de minha parte, fiquei encantado com tanta belezura e luz. Senti-me inspirado diante de tantas cores encantadoras, cheguei a me emocionar e até escrevi verbos afetados e exaltados, até arrisquei versos pungidos como se poeta fosse, como se árvore quisesse ser, sentindo-me como árvore, falando como árvore.
Ah… essas árvores, tão esguias e imponentes, tão cheias de graça, tão femininas com suas folhas feitas uma cabeleira sensual, tão acolhedoras como uma mãe com suas sombras refrescantes!
Ouço por dias e noites os seus murmúrios constantes, ora entoam canções de ninar, ora lamentam as tristezas da vida, ora desfiam saudades sentidas .. Por vezes, ouço o arfar de seus prazeres e o disse me disse de suas folhas e galhos. Conversam animadas como mulheres que confidenciam, em sussurros, segredos como as boas amigas.
São tão tranquilas e serenas como monges com seus mantos aos ventos, são afeitas ao assento dos pássaros, sobre si abriga ninhos, em seus galhos acalenta filhotes e esses, sobre eles, arriscam os primeiros voos. São tão hospitaleiras que quase sempre os convidam para os cânticos. As árvores, as cigarras e os pássaros cantam em dueto, terceto ou sexteto, entoam verdadeiras sinfonias! É lindo de se ver, é sublime escutar!
Ah… essas árvores que bafejam o alento vital, o oxigênio em nossos pulmões, se expressam tão belas pela arte da dança! Seus bailados são os mais diversos e ecléticos. Tenho cá comigo que já nasceram bailando.
Aproveitam as brisas suaves para as valsas e as baladas românticas, utilizam as tempestades para danças catárticas, para as performances viscerais, energéticas, eivadas de tensão e dramáticas como as óperas!
Às vezes, nos meus instantes de aleamento em que estabeleço distâncias de mim, em que me diluo em infinitos horizontes, nas noites em que a lua se apresenta esplêndida com sua face pálida, pego-me embevecido pelos balanços e pelos movimentos lascivos das árvores. Olho o chão e vejo suas sombras projetadas a lembrar os movimentos de corpos suados na penumbra dos quartos daqueles que amam.
Então faço um esforço mental para “desindividualizar” minha alma de maneiras a me transformar também em uma árvore.
Sob o encanto do mesmo luar, meu corpo metamorfoseia-se, sinto-o enrijecer-se, meus músculos se convertem em entrelaçadas e rígidas fibras de carbono e sob a mesma brisa, sinto meus braços, minhas mãos e dedos multiplicarem as centenas e transformarem-se, num movimento contínuo, em galhos e folhas. Os pelos desaparecem de sobre minha derme e em lugar dessa surgem cascas secas, a parte mais externa e visível de minha configuração arbórea. Partes de mim se desprendem e repousam inertes sob meu tronco, na ação inexorável das chuvas com os tempos, irão se decompor para me adubar, retornarão à minha essência primordial de árvore. No lugar de meu sangue, sinto a seiva pulsar em minhas entranhas, agora não vivo apenas em função do meu estômago, destituído estou de vísceras, observo das alturas pequenas formigas subirem pelo meu tronco, sinto cócegas como reminiscências de meu anterior cérebro humano.
Absoluto inumano e completamente árvore, toco as suas folhas, percebo sua textura, sua maciez, sua umidade prazerosa. Sinto o roçar dos meus nos seus galhos e nesses toques eu sinto o inefável cheiro de seus hormônios a exalar no ar e a excitar todas as demais árvores do entorno. Elas se ouriçam, se burilam e também dançam lascivas celebrando com seus membros, com suas flores e polens a vida e a natureza!
Há uma profusão imensa de elementos químicos no ar, há muito dióxido de carbono sendo consumido como alimento à suprir as energias gastas pela fogosidade e volúpia das árvores.
Porém, horas depois, logo a madrugada chega e aquieta todos os ânimos, o cansaço vence toda a fogosidade e buscamos o melhor dos descansos para o melhor dos cansaços. Há um relaxamento total e absoluto!
No despertar dos primeiros raios translúcidos do sol, insinuantes, esses beijam sem nenhum pudor aparente, o verde das árvores e as suas folhas excitadas, exalam o oxigênio para todos os pulmões. Acordo atrasado, volto ao meu humano original e respiro fundo o meu primeiro café da manhã. Então, as abelhas chegam às centenas e aproveitam o despojo da festa noturna, o néctar de seus prazeres.