Denise Dora, da Artigo 19, concedeu entrevista para a DW.com
Ataques a jornalistas partem principalmente de autoridades públicas e refletem “concepção autoritária do poder”, diz Denise Dora, da Artigo 19. Em cinco anos, país caiu de 31º a 89º em ranking de liberdade de expressão.
A liberdade de expressão no Brasil está em risco e a perseguição à imprensa, especialmente às profissionais mulheres, atingiu dimensões preocupantes. É o que aponta Denise Dora, diretora executiva da Artigo 19, organização não-governamental que monitora as liberdades da imprensa, da sociedade civil e de cada indivíduo para se expressar e comunicar.
Segundo a executiva, os ataques a jornalistas partem principalmente de autoridades públicas e foram um dos principais fatores que levaram à queda drástica do Brasil no ranking internacional de liberdade de expressão elaborado pela ONG. De 31º em 2015, o país despencou em 2020 à 89ª posição dentre 161 países. A deterioração nesse período só foi pior em Hong Kong e no Afeganistão.
“O Brasil se encaminha para esse ambiente autocrático, de autoridades que se colocam acima do bem e do mal, da lei e das instituições. É por isso que algumas autoridades pensam que podem atacar os jornalistas: porque atacam outras coisas também. É uma concepção totalmente autoritária do poder”, afirma Dora em entrevista à DW Brasil.
DW Brasil: O Brasil teve uma queda drástica nos índices de liberdade de expressão de 2015 para cá. Como o país chegou a este ponto?
Denise Dora: Essa queda, principalmente nos últimos três anos, se deve a três fatores. Por um lado, o desmonte dos sistemas estatais de acesso à informação e transparência, com perda de pessoal e recursos, e a decretação de sigilo sobre um conjunto de informações de interesse público. Um exemplo: durante a pandemia, os grandes veículos de imprensa tiveram que criar um consórcio próprio para levar informações à população, porque as informações do Ministério da Saúde não existiam ou não eram confiáveis. Isso é muito sério, porque coloca 200 milhões de pessoas numa neblina.
Um segundo aspecto são os ataques à imprensa, especialmente às jornalistas mulheres. Elas são alvos de perseguições grosseiras, profundamente machistas e muito ameaçadoras. Falo de montagens com corpos nus, mensagens encaminhadas a elas e seus familiares, ameaças públicas, piadas difamatórias. Não é uma profissão segura no Brasil – vide o que aconteceu com o Dom Philipps na Amazônia. Se a imprensa não tem espaço e garantias para informar a população, quem fará isso?
Outro fator é a existência de várias iniciativas do governo federal e de aliados no Congresso para reduzir os espaços democráticos. Por exemplo: ao criar possibilidades de enquadramento na lei de terrorismo contra quem se manifesta, ou ao decretar um estado de emergência para justificar a ampliação do auxílio emergencial. A gente sabe que é uma ação eleitoreira do governo, mas não só, porque o estado de emergência pode implicar na desregulamentação de outras proteções. Você pode, por exemplo, adiar eleições num estado de emergência.
O país passou à categoria de liberdade de expressão “restrita”. O que isso quer dizer concretamente?
No Brasil havia um pressuposto de liberdade de expressão e acesso à informação que garantia às pessoas o direito de se organizar, se manifestar, expressar suas opiniões, votar e ter acesso à informação. Conforme o país vai caindo no ranking, esse espaço diminui.
Um exemplo é a jornalista que se pergunta: “Será que eu publico isso? Vou ser atacada por isso?” Vai surgindo um certo constrangimento. Outro exemplo: tem professores de história respondendo a inquéritos porque deram aula sobre as revoluções russa e francesa. São mais de 300 casos mapeados de profissionais constrangidos por pais de alunos. Isso é censura à educação e ao desenvolvimento dessas crianças, e está criando um problema para a categoria.
Juízes no exercício do Estado democrático de direito estão sendo atacados. A Lei de Acesso à Informação, há regiões em que a infraestrutura foi completamente desmontada. O funcionário que existia não está mais lá, foi transferido, não tem outra pessoa no lugar, não tem como responder, não responde no prazo, diz que não tem as informações, ou que está sob sigilo pelos próximos cem anos. Deixa-se de ter acesso a informações relevantes para o seu trabalho, para a sua vida.
Qual é o tipo de ameaça que predomina hoje, e qual delas é mais nociva?
A liberdade de expressão é como um prisma: ela tem várias faces, mas só existe se esses elementos estiverem todos presentes. Algo grave no Brasil hoje é a perseguição à mídia e a jornalistas. Vemos vários casos envolvendo nomes da grande imprensa, mas é muito forte a perseguição ao jornalismo comunitário, àquela pessoa que faz um podcast numa pequena cidade do interior, que tem um blog. A maioria dos profissionais assassinados nos últimos 15, 20 anos no Brasil está fora do eixo das grandes regiões e da grande mídia. Garantir que a imprensa possa funcionar livremente é um elemento indispensável; garantir que essa mesma imprensa tenha acesso a informações públicas, também. E é fundamental que isso aconteça num ambiente de proteção democrática.
Outro ponto importante é o papel que as redes sociais ocupam nesse cenário de propagação da informação e da desinformação. Elas não têm mecanismos de regulação eficientes contra a mentira, contra grupos organizados de propagação de ódio, que são ostensivamente racistas, homofóbicos, misóginos. Isso é central para a queda dos padrões de liberdade de expressão no mundo, porque você tem um grande ator no campo da comunicação, que são as plataformas, que permite os discursos de ódio.
A que vocês atribuem o recrudescimento desses ataques à imprensa?
Hoje, os ataques à imprensa no Brasil partem majoritariamente de autoridades públicas – governantes, ministros, secretários, familiares de governantes, pessoas que ocupam posições de poder político, têm cargos, têm mandatos e se sentem autorizados a ameaçar quem os critica. É um caso clássico de autoritarismo do estado: quando um governante acha que não pode ser criticado pela imprensa e revida violentamente com ameaças, ataques, mobilizando às vezes suas bases para perseguir jornalistas.
Qual o motivo por trás disso?
É a concepção autoritária do poder. “Eu estou no poder no momento, fui eleito e tenho direito de fazer o que quiser” – como se o país, aquele recurso, fosse da pessoa. Isso inclui corrupção (“posso gastar esse dinheiro como eu quiser”), inclui interferência em órgãos do estado (“posso interferir nas investigações da polícia”).
A ideia da democracia é que a população, em última instância, é beneficiária das políticas públicas e também manda no país. Ela tem a palavra final através do voto, mas também através da participação cidadã. O oposto disso – que são as autocracias, as monarquias, os regimes ditatoriais – é meia dúzia de gente que escala o poder de alguma forma e acha que o país é deles.
O Brasil se encaminha para esse ambiente autocrático, de autoridades que se colocam acima do bem e do mal, da lei e das instituições. E que acham, portanto, que a terra, os recursos públicos oriundos de impostos, as instituições democráticas podem ser utilizadas e manipuladas ao seu bel-prazer. É por isso que algumas autoridades pensam que podem atacar os jornalistas: porque atacam outras coisas também. É uma concepção totalmente autoritária do poder.
A direita argumenta que sofre censura e empunha a bandeira da liberdade de expressão. O inquérito do Supremo Tribunal Federal tem atingido principalmente influenciadores e veículos conservadores. Qual é a diferença entre esses casos e os que você citou anteriormente?
Os inquéritos do STF não tratam de censura, mas de ameaças e perseguição ao rito democrático, ao próprio funcionamento das instituições. Tem deputado clamando pela morte de pessoas. Quando você faz isso, especialmente uma autoridade, um deputado ou governante, o que você fala pode virar ação. Aquilo que seria uma “opinião” vai se revestindo de um tom de ofensa, difamação, injúria, preconceito. Depois se transforma em ameaça, perseguição. E, por fim, vai incentivando pessoas a objetivamente atacarem. Além de mandar mensagens ameaçadoras, elas começam também a agir de forma ameaçadora. Essa escalada de “estou dando a minha opinião” para ameaçar pessoas e instituições, mobilizar outros para ameaçar e atacar, isso é crime.
Como sensibilizar as pessoas para o tema em um país onde a maioria hoje enfrenta questões existenciais, como a incerteza sobre se haverá comida no prato no dia seguinte?
Essa relação entre pão e liberdade, além de ser histórica, não é contraditória. Poder comer diariamente depende de distribuição de recursos, de as pessoas poderem se organizar e se manifestar para conquistar isso. O Brasil tinha saído do Mapa da Fome com programas governamentais, mas também com mecanismos de participação. Não é uma cabeça ou duas que decidem, é um conjunto de pessoas que precisam de liberdade para participar, orientar, melhorar e, desta forma, garantir que programas sociais sejam efetivos e cheguem a quem precisa. Por que as pessoas estão com fome hoje? Não é só por ausência de distribuição de recurso econômico. Elas não têm nenhuma chance de dizer como isso poderia ser feito. Não têm nem chance de reclamar, porque os canais de participação fecharam. Não têm liberdade de demandar comida.
Por Rayanne Azevedo – DW.com