The Worthy é um dos filmes mais angustiantes e perturbadores da história do cinema

Esse suspense psicológico está no catálogo da Netflix e vale a pena assistir

Malgrado feita de suas tantas imperfeições; de uma quase total falta de lógica; de sua vocação fundamentalmente conflituosa, como se seu papel primeiro fosse sempre encontrar meios de passar por cima da dignidade humana, ignorando necessidades e desafiando variáveis tão poderosas quanto o próprio tempo, a vida é, inquestionavelmente, a maior graça que o homem pode receber, e como toda graça, exige de nós sacrifícios que nem sempre estamos dispostos a oferecer, dentre os menos traumáticos, assumir, como a própria vida, uma postura visceralmente agressiva diante dos outros. Incorporamos esse personagem, o de algoz dos que nos rodeiam, com uma facilidade assustadora — até porque ele nos habita a todos, sem distinção, mesmo na bondade falsa dos candidatos a salvadores do mundo. Viver e, ainda mais, sobreviver, é um jogo perigoso, arbitrado por um juiz injusto, dado a caprichos e vingativo, indócil quanto a acertar contas das quais nunca nos recordamos, mas que não tardam a se fazer cobrar nos piores momentos, precisamente quando não dispomos mais do socorro das circunstâncias favoráveis de outrora.

Essa disputa contra a vida — inglória para nós porque sempre desvantajosa — torna-se especialmente difícil à medida que percebemos o quão melancólico pode ser estar num mundo que sucumbe aos nossos cruéis descuidos, o que termina por acarretar uma situação bizarramente curiosa. O homem parece não se importar com a evidência inescapável de que é apenas a peça quase invisível de um mecanismo gigantesco, que pode continuar sem ele, por mais que nossa arrogância não nos permita admiti-lo. Envenenada por sua própria empáfia, a humanidade também perece com o mundo, completamente atordoada, sufocando-se no caos que não se cansa de fabricar. Ali F. Mostafa toma uma posição nada confortável em “The Worthy”, seu filme mais conhecido. O diretor, londrino, filho de pais que deixaram os Emirados Árabes Unidos por razões políticas, chegou a um ponto da vida em que não ouve calado certas tolices. Mostafa não tem o menor pejo de colocar areia nas ilusões de quem pensa que Dubai é como uma Disneylândia no coração do Oriente Médio; em seu segundo trabalho, lançado sete anos depois de “City of Life” (2009), ele segue o que tem sido sua missão, às vezes bem-sucedida, outras nem tanto: desmistificar pensamentos tirtos sobre sua terra, de preferência, como neste filme, evocando assuntos do interesse de todos quantos respiram.

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Essa aura emocionada e emocionante, entre a franqueza e o sensacionalismo, aparece já nas primeiras tomadas. A fotografia sempre um tom abaixo, oscilando do cinza para o sépia e daí para o azul e o verde, é um grande acerto de Adrian Slisteanu, e sem dúvida é o que mais cativa em “The Worthy”. O texto de Vikram Weet, apesar de escrupuloso, definitivamente não tem nada de inovador, salvando-se, como sói acontecer no cinema, essa arte plena de maravilhosos sortilégios, pelo desempenho dos atores. Na Terra pós-apocalíptica imaginada por Mostafa, Shuaib, o ex-motorista de caminhão do ótimo Samer Al-Masry, lidera uma malta de esfarrapados que se refugia num esqueleto de prédio, a única reserva de água do planeta. Supõe-se que esses povos do deserto tendem a manifestar um pouco mais de solidariedade uns pelos outros, mormente num cenário de cataclismo como que se vê, meia-verdade que Weet torce a seu gosto, e Mostafa compra a ideia. É por aí que a trama começa a enveredar por um instigante suspense psicológico, quando Shuaib se compadece de dois peregrinos e deuxa que eles acessem o prédio. Mussa, interpretado por Samer Ismael, e Gulbin, de Maisa Abd Elhady, não se furtam a rasgar a fantasia assim que podem, e os três dão início a um envolvente jogo de gato e rato, cujo final decreta quem é ou não digno de continuar com vida.

O filme cresce nas passagens de confronto entre as duas facções que se originam no complexo, inclusive numa protagonizada por Eissa, o filho de Shuaib vivido por Mahmoud Al-Atrash, excelente, que tenta derrubar Mussa, que se revela o vilão da história. Ainda que embarque gostosamente em maniqueísmos e reducionismos fáceis e ingênuos, o ritmo de “The Worthy” contribui para um saldo positivo, mérito também da edição de Shahnaz Dulaimy, ágil e precisa, onde nada falta e nada sobra. Complemento da poesia com a técnica.

Por Revista Bula