Todos os gatos ronronam

Um sorriso falso, um bom dia sem desejar, um “Que Deus te abençoe”, mas que no fundo, é um “Que se foda”

No escuro da noite me perdi do meu eu. No amanhecer, reencontrando-o, meu eu me disse, quanto esteve distante de mim, que tinha visto que tínhamos perdidos a essência humana. Espantado, perguntei se éramos só nós ou todos? Depois de um tempo pensativo, o meu eu, pesaroso, respondeu que sim, que eram todos.

Quis saber como isso tinha acontecido e por quê? Ele começou dizendo que não sabia, mas mesmo assim não parou de falar, disse que imaginava que tinha sido por conta das mentiras. Falou que nós atingimos o sétimo nível da mentira onde o ser deixa de ser humano. Questionei de como isso funciona, como? Ele disse que tudo começa com a meia verdade. Que para esconder um defeito pessoal contamos uma meia verdade, para esconder dos outros e não precisar mudar esse defeito em nós mesmos. E que por muito tempo encontramos meias verdades para tudo que nos cerca. Um sorriso falso, um bom dia sem desejar, um “Que Deus te abençoe”, mas que no fundo, é um “Que se foda”.

low angle shot of a tabby cat
Foto Pixabay

Então poderei, disse, mas isso eu também faço, e não acredito seja, assim, um mal maior. Aí ele me disse que isso é a porta de entrada para as mentiras. Falou, que na meia verdade resolvia-se, assim, um problema interno, porém, com a mentira você conseguia resolver um problema externo também. Ele disse que na meia verdade tenta-se esconder uma verdade inteira com uma história que a explique, e que na mentira, longe de resolver a verdade e a história da verdade, cria-se uma nova, uma melhor, assim apagando o defeito, aquele, que a meia verdade tentou esconder.

Então eu perguntei o que era a história dos sete níveis de mentira. Ele disse que existe a primeira mentira, a mentira pessoal, a tua mentira, e essa mentira tua torna-se uma mentira coletiva passada de um para o outro, nesse ponto, para a equiparação, outros criam mentiras equivalentes a tua, já que a sua circulou entre mais pessoas. Daí em diante você já está tão habituado a mentira, a sua e a dos outros, que começa a construir a mentira global. Que vira uma narrativa social plena.

Sem saber do peso disso, a consequência é que uma mentira sobrepõe a outra que sobrepõe a outra e sobrepõe a outra e quando volta para você, que contou a primeira, na verdade, ela criou um novo mundo, um mundo que não existe. E por isso é que a nossa essência humana se perde e deixa de existir neste mundo que não existe. E aí vem a cegueira, primeira é a de não mais enxergar a mentira, depois de enxergar o seu próximo, o seu igual. Não vê a fome, não vê a solidão, não sabe mais o que é empatia, nem a solidariedade, e não “ronrona” mais, pois ronronar e o sinal de que os gatos tem carinho por você. Pronto, perdemos a essência humana.

Por José Woitschach