Operação que sacudiu o mundo político e empresarial nos últimos seis anos vem acumulando revezes diante dos seus próprios erros e investidas de adversários
A Lava Jato, símbolo de combate à corrupção e vetor de crises políticas que atingiram o país em sua história recente, vive o seu pior momento. Criada em abril de 2014 para apurar desvios de verbas na Petrobras, a operação tem enfrentado uma série de revezes que colocam em risco a sua própria existência.
Hoje dividida em três forças-tarefas, em Curitiba, São Paulo e Rio de Janeiro, a trepidação que atinge a Lava Jato decorre de erros cometidos por seus integrantes, mas também do alinhamento de forças políticas e jurídicas que buscam frear a operação.
Três episódios recentes ilustram a sua crise. Em 25 de agosto, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal anulou uma sentença do ex-juiz Sergio Moro no caso Banestado, ocorrido na década de 1990, por entender que o magistrado não atuou com imparcialidade. É o mesmo argumento usado pela defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para pedir a anulação das sentenças de Moro contra o petista, em casos ainda não decididos pela Corte.
Outro sinal de enfraquecimento veio de Curitiba, no dia 1º de setembro, quando o procurador Deltan Dallagnol, o rosto público da Lava Jato, anunciou que deixaria a coordenação da força-tarefa no Paraná. Ele vem enfrentando crescente processo de desgaste e é alvo de diversas reclamações disciplinares no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Nesta terça (8/09), o colegiado puniu Dallagnol com pena de censura por ter feito postagens no Twitter contra o senador Renan Calheiros (PMDB-AL) em 2019 em meio à eleição à presidência do Senado.
O terceiro caso ocorreu em São Paulo, em 2 de setembro. Sete integrantes da força-tarefa paulista apresentaram pedido de desligamento da operação por “incompatibilidades insolúveis” com a procuradora natural dos casos da Lava Jato, Viviane de Oliveira Martinez, que assumiu o cargo em março e teria apresentado “resistência ao aprofundamento das investigações em curso”, segundo eles.
Desvios da Lava Jato
As más notícias para a operação se intensificaram nas últimas semanas, mas seus problemas começaram bem antes. Um marco foi a revelação, pelo site The Intercept Brasil, de milhares de mensagens trocadas por integrantes da Lava Jato. As conversas incluíam conversas entre Dallagnol e Moro combinando estratégias processuais e Dallagnol discutindo planos para ganhar dinheiro dando palestras contra a corrupção, entre outras práticas discutíveis.
Algumas decisões de Moro também foram muito questionadas, como a divulgação de um grampo telefônico entre Lula e a então presidente Dilma Rousseff, em março de 2016, depois usado pelo ministro Gilmar Mendes para suspender a nomeação do petista ao cargo de ministro da Casa Civil. Ou a retirada do sigilo da delação do ex-ministro Antonio Palocci às vésperas da eleição presidencial de 2018. Ambas as decisões de Moro acabaram anuladas posteriormente pelo Supremo, mas quando já haviam produzido efeitos políticos.
“A Lava Jato se prestou a fazer coisas que solaparam a sua própria legitimidade. Ao fazer o combate à corrupção, que é legítimo e segundo a lei, cometeram muitos desvios contra a própria lei, e hoje estão colhendo esse fruto”, afirma à DW Brasil José Reinaldo de Lima Lopes, professor titular da Faculdade de Direito da USP.
Ele avalia que os órgãos de controle disciplinar do Judiciário e do Ministério Público deveriam ter agido para coibir abusos ao longo da Lava Jato e “salvaguardar as instituições de combate à corrupção”, mas não o fizeram. “Quando os casos começam a chegar ao Supremo, o Supremo se vê constrangido pela lei a rever as decisões”, diz.
O professor da USP lembra que a Lava Jato, por ter sido criada por ato do procurador-geral da República, está sujeita ao poder administrativo do chefe da instituição. “Os procuradores da Lava Jato começaram a se conceber como uma instituição autônoma no Ministério Público e não prestar contas a ninguém, nem à lei. Isso é um problema”, diz.
O cientista político Leon Victor de Queiroz Barbosa, professor da Universidade Federal de Pernambuco e especialista em instituições judiciais, também aponta para a necessidade de um ajuste no modo de combate à corrupção adotado pela operação.
“Se a Lava Jato se sustentou por meios inadequados, vazamento seletivo de informações, decisões sujeitas a revisão por falhas formais, então não há que se falar em desmonte, mas um retorno ao devido processo legal. Se isso significa menos pessoas presas, paciência. Não se combate o ilícito com ilícitos, por mais bem intencionados que sejam esses últimos”, diz.
Retaliação à operação
O que está em jogo, porém, não é somente uma correção de rumos no funcionamento de órgãos de combate à corrupção. Joaquim Falcão, professor da FGV Direito Rio e membro da Academia Brasileira de Letras, vê em curso uma nova estratégia para neutralizar a Lava Jato, que ele define como a “terceira fase” de represálias à operação.
“Assim como o combate à corrupção evoluiu, a retaliação também. No início, havia estratégias fragmentadas para casos de corrupção isolados. Não funcionaram mais. Quando o combate à corrupção se tornou sistêmico, a estratégia passou a ser mudar as regras do jogo. Novas leis mudaram o sistema criminal, em uma espécie de autodefesa. Também não conseguiram. Hoje, o que vemos é a tentativa de neutralizar os órgãos de controle. Não interessam mais leis ou buscar nulidades. Basta controlar os que nos controlam”, afirma.
Para Falcão, essa estratégia ameaça a própria democracia ao instrumentalizar órgãos de combate à corrupção. “Como fazem? Nomeando aliados para cargos, como Polícia Federal, Ministério Público e, no futuro, para o Supremo. Manipulando o tempo das decisões. Omitindo-se em providências necessárias e, sobretudo, interferindo em processos e na busca de informações sigilosas para o Poder Executivo”, diz.
O professor da FGV Direito Rio afirma que a interferência política em órgãos de controle significaria “enorme retrocesso” e alerta para a operação realizada nesta quarta-feira (9/09) contra advogados de Lula. “Se estas buscas e apreensões contra advogados de adversários do presidente, ou se este alinhamento do PGR a Bolsonaro e as ações do CNMP significam uma interferência indevida do presidente, há risco severo de vermos deteriorarem as instituições”, diz.
Para ele, a Lava Jato hoje não se trata de Dallagnol ou de Moro, mas de uma “atitude” de combate à corrupção. “Sobretudo dos juízes jovens que não dependem de políticos para progredir em suas carreiras. Transcende seus protagonistas originais”, diz.
O papel de Aras
Uma figura-chave nesse processo é o procurador-geral da República, Augusto Aras, nomeado ao cargo pelo presidente Jair Bolsonaro à margem da lista tríplice elaborada pela categoria. Ele vem travando uma queda de braço com a Lava Jato e conta com o apoio de setores do próprio Ministério Público, do Palácio do Planalto, de diversos partidos representados no Congresso e advogados críticos à operação.
“A Constituição da ditadura dava ao PGR um papel diferente do atual. Ele garantia que a pauta do Supremo só seria ocupada por assuntos que interessavam à Presidência. A Constituição de 1988 mudou isso. O procurador-geral deve servir como defensor da sociedade civil. Mas o que se vê hoje é Aras agindo em favor de duas agendas que interessam à Presidência: a contenção das investigações contra os filhos e o avanço dos processos contra Deltan”, afirma Falcão.
Nesta quinta-feira (10/09), Aras autorizou a prorrogação da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba por mais quatro meses, até 31 de janeiro de 2021. Em seu pedido, Dallagnol havia solicitado a prorrogação por mais um ano.
Ao justificar a decisão, o procurador-geral afirmou que, em janeiro, o Ministério Público já deverá ter reformado o modelo de atuação das forças-tarefas. Ele defende a criação de uma Unidade Nacional de Combate à Corrupção e ao Crime Organizado, que centralizaria o comando de operações contra a corrupção em uma nova estrutura permanente, em Brasília.
Por Bruno Lupion – dw.com