Queimado na Europa

Investimentos do Governo do Estado visa impedir a repetição do que aconteceu no passado. Foto Amanda Perobelli/Reuters

Embaixador diz que política ambiental brasileira está travando acordo Mercosul-UE

As negociações do acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia (UE) se encontram paralisadas. E a culpa é da política ambiental do governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). A afirmação é do representante do bloco europeu no Brasil, o embaixador Ignacio Ybáñez, em entrevista à BBC News Brasil.

O acordo Mercosul-UE é o maior tratado de livre comércio do mundo: engloba 32 países, com 780 milhões de pessoas e um Produto Interno Bruto (PIB) combinado de US$ 20 trilhões.

O principal ponto do acordo é a redução de tarifas de importação, que podem chegar a zero. Significará, em tese, produtos mais baratos e crescimento econômico dos dois lados do Oceano Atlântico.

Desmatamento na Amazônia é o principal entrave para a assinatura do acordo. Foto Wikimedia

O texto do acordo foi fechado em 28 de junho de 2019, após 20 anos de discussões — mas ainda há várias etapas a serem cumpridas antes que a medida possa entrar em vigor.

Neste momento, diz Ybáñez, as negociações estão “numa situação de ‘stand-by'”, até que o governo brasileiro se comprometa a adotar políticas públicas para controlar o desmatamento na Amazônia.

Em 2019 e 2020, o Brasil quebrou recordes de desmatamento na floresta tropical, e amargou tragédias ambientais em outros biomas, como os incêndios deste ano no Pantanal.

O momento também é de crescente incômodo na UE com o desmatamento no Brasil — recentemente, o Parlamento Europeu aprovou uma resolução que obriga as empresas brasileiras a garantir que não exista desmatamento em suas cadeias produtivas.

“No caso concreto, o que está acontecendo no Brasil, sobretudo em relação ao desmatamento, na Amazônia, faz com que agora a Comissão (Europeia, o braço executivo do bloco) considere que não existem as condições necessárias para levar adiante o processo”, disse Ybáñez.

Para que as negociações possam ser retomadas, diz o embaixador, o próximo passo é a assinatura de uma declaração política na qual o Brasil e os outros países do acordo se comprometem com políticas públicas para reduzir o desmatamento na região.

Só depois disso é que o cronograma pode seguir: os próximos passos são a assinatura do acordo; sua ratificação pelo Conselho Europeu e depois pelos estados-membros. Além disso, o texto também será votado no Parlamento Europeu antes de começar a vigorar.

Procedimento parecido ocorrerá do lado do Mercosul — o acordo precisará ser aprovado pelos parlamentos dos quatro países do bloco: Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai.

A boa notícia, diz Ybáñez, é que o governo brasileiro está se mostrando favorável a assinar a declaração sobre a Amazônia — conversas já foram feitas com o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, e com o vice-presidente Hamilton Mourão.

“Eles (governo brasileiro) compreendem a preocupação; eles estão preparados para chegar a esta declaração política, para restabelecer a confiança da União Europeia. Esta é a parte onde estamos trabalhando”, diz o embaixador.

Embaixador da UE Ignacio Ybanez. Foto Divulgação

Ignacio Ybáñez Rubio é economista de formação e diplomata de carreira. Está em Brasília desde 2019, onde chefia a delegação da União Europeia no Brasil. Leia a seguir os principais trechos da entrevista.

BBC News Brasil – Como está o processo de assinatura e ratificação do acordo comercial Mercosul-UE? Quais são os próximos passos para o acordo e onde estamos no cronograma?

Ybáñez – A (situação atual) foi verbalizada pelo comissário (Valdis) Dombrovskis, vice-presidente da Comissão, quando ele foi designado como Comissário de Comércio (em setembro de 2020), e teve de comparecer perante o Parlamento Europeu. (Na ocasião), Dombrovskis respondeu com três elementos.

O primeiro é que o acordo, tal como está, é um acordo muito bom. Que tem, principalmente na parte sobre comércio e desenvolvimento sustentável, o maior nível já alcançado pela União Europeia — nunca tivemos um acordo tão moderno quanto este.

Então, deste ponto de vista, a convicção da comissão europeia é a de que não é preciso reabrir o acordo.

O segundo elemento trazido pelo vice-presidente Dobrowski é que no caso concreto, o que está acontecendo no Brasil, sobretudo em relação ao desmatamento, na Amazônia, (faz com que) agora a Comissão considere que não existem as condições necessárias para levar adiante o processo.

Nem com a assinatura, nem com a apresentação do texto para ratificação pelo Parlamento Europeu primeiro e depois pelos Estados-membros.

O terceiro elemento é que, para recriar as condições que possam permitir à Comissão apresentar o texto ao Conselho dos ministros da União Europeia, onde estão representados os Estados; e também ao Parlamento Europeu, é preciso restabelecer as garantias políticas sobre ações futuras por parte do governo brasileiro.

Então estes são, insisto, sem reabrir o acordo, os elementos que vão ser importantes.

BBC News Brasil – E como estão as negociações em torno desta declaração política?

Ybáñez – Essa terceira parte já começou. Já tivemos conversas com o governo brasileiro; já transmitimos ao governo brasileiro essa preocupação que existe na Europa (…). O Comissário (Dombrovskis) a apresentou, primeiro ao ministro (das Relações Exteriores, Ernesto) Araújo, e depois ao vice-presidente Mourão, essas condições, e a primeira resposta do governo brasileiro tem sido positiva.

Eles compreendem a preocupação; eles estão preparados para chegar a esta declaração política, para restabelecer a confiança da União Europeia. Esta é a parte onde estamos trabalhando.

Quando chegarmos a este texto, não sabemos quanto vai demorar, mas neste momento a Comissão Europeia voltará a apresentar a proposta para assinatura e ratificação do acordo.

Então estamos, no que diz respeito ao acordo, numa situação de “stand-by”. De espera. Até conseguir esta declaração.

Insisto: a afirmação que temos recebido do governo brasileiro é a de que eles estão preparados para chegar a esta declaração política a respeito da situação na Amazônia.

BBC News Brasil – Quais seriam os pontos dessa declaração política?

Ybáñez – Isto ainda é um pouco cedo para dizer, porque logicamente é parte de uma reflexão conjunta. Nós temos algumas ideias que já colocamos ao lado brasileiro, e os brasileiros já começaram a responder sobre estes pontos, sobre como gostariam de encaminhar.

Estamos ainda neste processo, e é um pouco cedo para falar de documento final.

BBC News Brasil – Mas não há até agora um cronograma realista para os próximos passos.

Ybáñez – Tudo pode acontecer. Ou muito rápido, ou muito lento.

Se formos capazes de chegar a uma declaração rapidamente, a uma declaração que seja aceita pelas duas partes; logicamente também que acordada com os outros países do Mercosul; se formos capazes de chegar a esta declaração rapidamente, as coisas podem recomeçar mais rápido.

Se, ao contrário, o processo demora mais tempo, não poderemos começar. É difícil de saber. Mas a vontade da Comissão Europeia é adiantar o mais rapidamente possível.

Nós achamos que o acordo é um bom acordo, e achamos ainda mais: que no tempo que estamos vivendo, com os efeitos econômicos da covid-19, com a redução do comércio internacional, os benefícios do acordo vão ser muito positivos para as duas partes.

Mas é mais importante assegurar que tenhamos uma boa declaração. Que essa declaração funcione para a Europa, para os nossos estados-membros, para a opinião pública geral, e também para a sociedade civil em conjunto; que vá servir para recuperar essa confiança.

BBC News Brasil – No fim de novembro, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, o INPE, divulgou dados preliminares para o desmatamento na Amazônia, de agosto de 2019 a julho de 2020. Foram 11.088 km² de floresta perdidos, uma alta de quase 10% em relação ao ano anterior e o maior número desde 2008. A atual política ambiental do Brasil põe em risco o acordo Mercosul-UE?

Ybáñez – O acordo está baseado em valores, como qualquer acordo que a União Europeia faz com os seus parceiros internacionais. Valores que vão desde a democracia, do respeito aos direitos humanos, valores de direitos laborais, e também valores do desenvolvimento sustentável. Que é a base do acordo.

Então para nós, europeus, é bem importante, agora que vamos começar esta nova relação de parceria com os países do Mercosul, que estes valores sejam respeitados.

Se você tem um parceiro que você vai fazer um acordo com ele, e já desde o início, antes de começar, começam a surgir práticas que vão contra o que vai ser o acordo, você vai ficar preocupado.

Então isso foi o que aconteceu desde que finalizamos a negociação, em junho do ano passado (2019).

Nesse momento, o Brasil reiterou a sua disposição e a sua convicção de ficar no Acordo de Paris sobre Mudanças Climáticas, e isso foi muito bem recebido pelos países da União Europeia. Isso permitiu encerrar as negociações naquele momento.

Mas o Acordo de Paris está baseado em compromissos que cada um dos membros do acordo vão cumprir. E para o Brasil cumprir os seus objetivos nesse acordo, precisa voltar aos números de desmatamento que tinha antes. Se o desmatamento continuar, não poderá cumprir os objetivos.

Os números que você citou são bem negativos e nós já expressamos isto ao governo brasileiro. Mas o que para nós é positivo é que o governo brasileiro aceita que estes são números ruins.

As declarações do vice-presidente (Hamilton Mourão), quando apresentou recentemente os dados do Prodes (Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite) (…), reconheceu que os dados são negativos. Que não são bons.

Então há uma vontade de mudar. E esta é a situação em que estamos. Uma convicção de que o governo brasileiro entendeu que isto tem de mudar. Que tem que fazer os esforços para mudar (…).

BBC News Brasil -Em julho, o sr. dizia que torcia para ver a assinatura do acordo ainda “na segunda metade de 2020”. Agora, isto não é mais possível, certo?

Ybáñez – Não. Não é possível porque, como eu falei, essa perda de confiança que tivemos ao longo do tempo, desde junho de 2019 em diante, sobretudo baseado nas estatísticas brasileiras, nos levaram à convicção de que algo está a faltar do lado brasileiro.

Aí foi quando o comissário, o vice-presidente (Dombrovski) fez este anúncio dentro do Parlamento Europeu. E aí confirmou que o acordo estava numa situação de “stand-by” (…).

BBC News Brasil – De modo geral, qual é a percepção sobre o Brasil na Europa neste momento? Como essa percepção mudou nos últimos anos?

Ybáñez – A percepção continua a ser positiva. O Brasil é um parceiro estratégico da União Europeia, e continuamos a ter muitas áreas onde a cooperação vai num bom caminho. Por exemplo, no âmbito da pesquisa (científica), continuamos a ter uma relação muito intensa com o Brasil.

No tema da covid-19, fizemos chamadas particulares a pesquisadores brasileiros sobre a busca pela vacina, mas também a respeito de tratamentos para a covid.

Então, na grande maioria dos temas, a percepção é boa e a relação é boa.

Mas é verdade que, nos últimos anos em particular, sobre o tema da sustentabilidade, sim, há algumas preocupações particulares, que aconteceram. E é verdade que aconteceram com este governo, desde a mudança de governo.

Mas temos outras áreas, ao contrário, que com este governo a nossa percepção é positiva se compararmos com o passado. Por exemplo, na abertura econômica.

Tanto o governo do presidente (Michel) Temer (MDB) primeiro, e depois o do presidente Bolsonaro, têm apostado muito claramente numa transformação do Brasil na direção da abertura econômica. E isso, sem dúvida, na Europa é muito bem percebido.

Então, como em todo parceiro, há coisas em que vocês tem maior sintonia; e a liberalização (da economia) é um exemplo disso; e tem outras áreas (como a sustentabilidade), onde muitas das decisões não foram bem recebidas na Europa.

BBC News Brasil – Qual a perspectiva dos brasileiros poderem voltar a visitar países da União Europeia?

Ybáñez – Lá se estabeleceu uma série de condições que são, sobretudo, sobre a situação da covid-19 em cada um dos países. E há um compartilhamento de informações sobre quais são os países nos quais, vamos dizer, a situação da pandemia de covid-19 permitiria a entrada.

Então, baseado nestes critérios, que são aceitos por todos os estados-membros, já se começou a elaborar uma lista de quais são os países que podem entrar.

De toda a América, do Norte e do Sul, o único país que está nesta lista é o Uruguai. Que, em relação à covid-19, tem dados muito melhores que o restante dos seus vizinhos. Os outros (países) estão sob observação, como estamos todos nós, porque a situação… Não há, por agora, a ideia de um calendário, de quando vamos poder incluir o Brasil dentro desta lista.

Mas insisto: esta é a percepção geral, dentro da União Europeia. Depois, cada estado-membro pode adotar decisões que eles considerem corretas.

Por BBC News