“Nosso trabalho na vacinação é desconstruir o imaginário social de que o que vem da China é ruim”
“É sabedoria popular. Não dá para botar todos os ovos só numa cesta, se a cesta cair a gente perde todos. Cometemos esse erro primário na estratégia de imunização”, diz o presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), Carlos Eduardo de Oliveira Lula, 38 anos. A crítica é ao Governo de Jair Bolsonaro que, até o início deste ano apostou apenas na vacina contra a covid-19 produzida pela Fiocruz em parceria com a universidade de Oxford e a farmacêutica AstraZeneca. Ignorando outros laboratórios e o Instituto Butantan, que produz o imunizante em parceria com a chinesa Sinovac. O cenário só mudou na primeira semana de 2021, quando o Ministério da Saúde anunciou que fechou um acordo com o Butantan para comprar as 100 milhões de vacinas que forem produzidas pelo instituto ao longo do ano.
Responsável pela Secretaria de Estado da Saúde do Maranhão desde 2016, Carlos Lula (que não tem parentesco com o ex-presidente Lula) afirma também que as autoridades sanitárias terão o desafio de convencer a população sobre a eficiência da vacina contra o novo coronavírus e de que questões ideológicas têm de ser superadas. “Muita gente está dizendo que vai perguntar se a vacina é da China porque diz que se for da China não toma. Teremos de resolver esse problema da credibilidade”, disse o advogado e autor do livro O SUS (s)em Nós. A seguir, os principais trechos da entrevista, feita por telefone na sexta-feira, 8 de janeiro.
Pergunta. Agora que há uma perspectiva para iniciar a vacinação contra a covid-19, quais tem sido os principais desafios dos Estados?
Resposta. Um dos desafios que os Estados têm pela frente é o de fazer a população confiar na vacina. Não tem sido incomum eu escutar de idosos, sobretudo do interior do Estado, que não vão tomar vacina porque essa é a estratégia do Governo retirar a aposentadoria deles, seria para matá-los.
P. Mas esse é um problema recorrente em campanhas de vacinação, não? Fazer com que a população mais idosa acredite.
R. Sim. Só que dessa vez vem mais fortalecido. Muita gente está dizendo que vai perguntar se a vacina é da China porque diz que se for da China não toma. Teremos de resolver esse problema da credibilidade. Temos de fazer a população acreditar que a vacinação é uma estratégia para salvar, não para matar. Isso afeta não só a vacinação contra a covid-19, mas todas as campanhas de imunização.
P. Olhando para o passado, não me recordo de ter visto alguém perguntando se uma vacina no posto de saúde era da China, dos Estados Unidos, da Finlândia…
R. E muito menos da eficácia da vacina. Ninguém está preocupado se a vacina da gripe tem o percentual de eficácia de 65%. As pessoas não deixam de tomar essa vacina por causa dessa eficácia. Se as pessoas se perguntarem de onde são os insumos das vacinas, aí todo mundo vai ficar preocupado, porque quase tudo é da China. Infelizmente, isso é fruto de nosso tempo. É um debate irresponsável, mas existe. E o que é pior, tem muita força. Até convencer a sociedade de que isso não faz nenhum sentido.
P. Dando nome aos bois. O maior peso nesse discurso vem do presidente Jair Bolsonaro e de alguns de seus aliados. Certo? É isso que mais afeta o debate?
R. Sim. Esses discursos afetam muito. A gente percebe quando escuta do velhinho que, em tese, é uma pessoa que não tem paixão política, que não é uma pessoa engajada em rede social, mas ele está dizendo que não vai tomar vacina da China. Isso é preocupante demais. Quando chega a este nível de debate é porque já foi pro imaginário social. Nosso trabalho na vacinação é desconstruir o imaginário social de que o que vem da China é ruim.
P. Como foram as outras campanhas de imunização. Elas já foram afetadas por essa falta de credibilidade ou pela pandemia em si?
R. Sim. Acredito que 2020 não serve como parâmetro para nada. A gente vinha há dez anos reduzindo o índice de vacinação de maneira geral no país, de uma maneira inexplicável. Não sabemos porque vem caindo de maneira permanente e contínuo ano a ano. 2020 foi um horror. Se olhar nossos indicadores de vacinação de praticamente nada, a gente cumpriu meta nenhuma. A pandemia afetou todos os serviços de saúde e afetou também a vacinação. O pior é ter levado essa discussão no âmbito da sociedade de uma maneira enviesada.
P. A Organização Mundial da Saúde estima que 20% da população mundial deve ser vacinada em 2021. Pelo que o ministério repassou aos secretários, há uma estimativa oficial de quanto da população brasileira deve ser vacinada neste ano?
R. Não tem essa estimativa para o Brasil. Mas no pior cenário, imaginamos que no primeiro semestre de 2022 todos estejam imunizados.
P. A população inteira ou só os principais grupos de risco?
R. Todos os brasileiros. Isso porque teremos a capacidade de produzir aqui. Essa é a diferença. Não dependeremos de laboratório de fora. Vamos fazer um cálculo conservador, se o Butantan e a Fiocruz conseguirem produzir 500.000 doses por dia, teremos 1 milhão de doses ao dia. Em 200 dias teríamos produzidas todas as doses. É uma conta grosseira. Mas tendo as doses, para vacinar é rápido porque temos capilaridade. Seria ruim se tivéssemos poucos locais de vacinação, mas temos mais de 30.000 salas de vacinação no país. Esse é um dos pontos benéficos do Sistema Único de Saúde (SUS). Como ele é capilarizado, ele tem condições de rapidamente conseguir vacinar a população inteira.
P. O Brasil está atrasado na vacinação contra a covid-19?
R. Estamos muito atrasados e com pressa. Adotamos o erro estratégico de apostar lá atrás em uma só vacina. Agora, corremos contra o prejuízo nesses últimos meses.
P. O Governo agora critica a farmacêutica Pfizer dizendo que ela não tem condições de atender a demanda do Brasil. Mas a empresa emitiu uma nota para dizer que ofereceu 70 milhões de doses para serem entregues em dezembro passado, e o Governo não deu um sinal positivo. Vocês tinham acesso a essa negociação?
R. Não tínhamos acesso às tratativas. Só sabíamos que existia uma proposta. Só que também sabíamos que o Ministério da Saúde tinha resolvido apostar só na Covax Facility, só AstraZeneca. Um erro. A gente pontuava que não dava para ser assim. É sabedoria popular. Não dá para botar todos os ovos só numa cesta, se a cesta cair a gente perde todos. Cometemos esse erro primário na estratégia de imunização.
P. Com a vacinação iniciando nas próximas semanas, como ficam as medidas de distanciamento social?
R. Temos de pedir para não alterar nada. Para manter o distanciamento social. Antes de imunizar um percentual considerável da sociedade. Teremos de continuar com o distanciamento, continuar usando máscara. A vacinação só funciona como estratégia coletiva. Não adianta eu me vacinar e todos ao meu redor não estarem vacinados.
P. Qual é esse percentual considerável?
R. Seria ao menos 60% da sociedade imunizada. Porque aí teríamos a outra dúvida. Quanto tempo vai durar a imunidade? A quarta fase é a da vacinação. Com a sociedade imunizada, testaremos os efeitos da vacina. Ninguém sabe ainda quanto tempo dura essa imunidade.
P. Imaginando que toda as 345 milhões de doses de vacinas prometidas para este ano sejam entregues e a vacinação avance de maneira adequada. Quando se chegaria a esses 60% de imunização na sociedade?
R. Uma estimativa otimista eu diria que no final de 2021.
P. Há uma discussão de que Estados e municípios poderiam ter seus planos próprios de vacinação. É possível ter esses planos? É necessário que eles existam?
R. É possível, mas a força do plano de imunização se dá coletivamente. Não adianta um Estado correr e querer fazer disso uma disputa. Acho que é possível adiantar a determinados grupos. Por exemplo, estou imunizando o grupo prioritário, os mais frágeis, mas eu quero voltar as aulas, então eu imunizo os professores e funcionários das escolas. Me parece uma estratégia possível. O Estado compra a vacina de outro local e imuniza os professores de sua rede.
P. Em alguns Estados, a entidades que abriram licitação para contatar 100.000 doses de vacinas para imunizar os comerciários e comerciantes. É esse o caminho?
R. Acho errado. A vacinação é uma estratégia coletiva. Não pode ser uma estratégia para aumentar a desigualdade. Se, simplesmente, eu coloco as pessoas com melhor situação econômica se vacinarem primeiro, eu jogo fora toda a estratégia de vacinação, que é vacinar quem é mais frágil antes. Por isso, não tem sentido eu falar em vacinação na rede privada. Essa vacinação é complementar à da rede pública. Ela não pode competir com a pública. No momento que eu tenho uma demanda altíssima com uma oferta baixa, toda essa oferta tem de ser destinada ao Estado. Isso acontece nos Estados Unidos, que não têm um sistema público de saúde. O Governo comprou todas as vacinas disponíveis e forneceu de maneira gratuita. Não tem sentido fazer esse debate no Brasil.
P. No início da pandemia foram abertos dezenas de hospitais de campanha. Agora, a maioria já fechou. Esse foi um erro de estratégia dos Estados e municípios?
R. Não. Os hospitais de campanha são muito caros. Esse é um grande problema. É caro manter uma estrutura que é móvel, sem que haja pacientes. Te digo, contando como um cara de sorte. Tentei adotar a estratégia no Estado [do Maranhão] de não ter hospital de campanha. Só fiz aonde era impossível não fazer. Apostei em estruturas permanentes. Tornou-se um legado da pandemia para o sistema de saúde. Eu construí hospital que ficou para a minha rede ou acelerei algumas obras que estavam em andamento. Apostar em hospital de campanha é apostar em uma estrutura cara e temporária. Eu não tenho condição de deixar aquilo ali parado. Por isso, os que eu tive, eu também fechei. Tinha quatro, fechei três. Foram dois fechados no interior e um no capital. O que está aberto hoje fica em Pedreiras, no interior.
P. O que os secretários têm discutido para frear o contágio? Vocês vão seguir administrando vagas para espaçar o número de mortes nos meses? Ou haverá tentativas reais de lockdown?
R. Vai de cada Estado. Têm Estados que voltaram adotar medidas mais rígidas, outros que não têm conseguido. Vai ficar nesse ioiô. Sabíamos que no início do ano, principalmente no Norte e Nordeste teríamos esse aumento dos casos. Quando começa a estação chuvosa, todos os anos, aumentam as síndromes respiratórias. Até maio tem esse aumento no Norte e no Nordeste. Aqui eu continuo me esforçando para aumentar o número de leitos, já prevendo um aumento dos números de casos de covid-19. No nosso caso, não precisamos aplicar medidas restritivas porque tenho a ocupação de 40% dos leitos, mais ou menos. Mas essa é uma medida que não saiu do radar. O que evita adotar mais rígidas é ter o controle da doença. Se aumentar a contaminação, vou fechar novamente.
P. Em outubro, o presidente Jair Bolsonaro disse que não compraria a vacina do Butantan. Até desautorizou o ministro da Saúde a adquirir a “vacina do João Doria”. Pelo que o senhor acompanha no Conass, porque ele mudou de ideia?
R. Por vezes, acho que a gente tem de não escutar o que o presidente diz e tentar conduzir as coisas de maneira mais técnica. Se ele tivesse ouvido o Ministério da Saúde dele em outubro, talvez a gente já estivesse vacinando todo mundo e não estaríamos nesta guerra há semanas. Trabalhamos muito para chegar a um acerto. É ótimo que tenhamos chegado a essa solução. E espero, espero muito que o presidente não desfaça esse acordo desenhado com o Butantan.
P. Quais Estados negociam diretamente com laboratórios para terem vacinas para eles?
R. Têm vários Estados negociando, mas nenhum fechou contrato. Não saberia dizer quais exatamente nem quantidade de vacinas porque tem muita negociação em sigilo para não esfriar a negociação.
P. Levamos cinco meses para chegar aos 100.000 mortos. Mais cinco meses e chegamos aos 200.000 mortos. Nesse ritmo e com o fluxo da vacinação ainda incerto, pode-se dizer que em junho estaremos com 300.000 mortos pela covid-19?
R. Quero acreditar que a gente vacinando os maiores de 60 anos e com comorbidade, já diminua muito esse índice de mortalidade. É uma doença muito dura com a população mais idosa. Não acredito que tenhamos mais 100.000 mortes daqui a cinco meses. Acho que vamos poupar muitas vidas.
Por Afonso Benites e Beatriz Jucá – EL PAÍS