Fechamento da Ford no Brasil impacta cadeia produtiva do setor
Em novembro de 2019, Jair Bolsonaro usou o Twitter para comemorar que três grandes empresas, entre elas a Honda, anunciavam que deixavam a Argentina para se instalar no Brasil, que era mais confiável para o investidor. Não era verdade, e ele apagaria a postagem, mas era mais uma provocação contra seu desafeto centro-esquerdista, Alberto Fernández, que se preparava para assumir a Casa Rosada. Pouco mais de um ano depois, o Planalto teve que amargar um anúncio real e simbólico, mas no sentido contrário: a montadora norte-americana Ford anunciou nesta segunda-feira que vai deixar de fabricar veículos no Brasil. Mais antiga do ramo no país, a empresa vai concentrar a produção de veículos justamente no Uruguai e, principalmente, na Argentina, e justificou a decisão citando a crise da covid-19, a desvalorização do real e a reestruturação global da companhia.
Serão cerca de 5.000 postos de trabalho brasileiros a menos, sem falar no efeito cascata em fornecedores de uma cadeia altamente especializada. A atividade da Ford cessará imediatamente nas unidades de Camaçari, na Bahia, e de Taubaté, no interior de São Paulo. A produção de algumas peças continuará por alguns meses para sustentar os estoques para vendas de reposição. A planta da Troller, em Horizonte, no Ceará, continuará operando até o quarto trimestre. A montadora manterá no Brasil apenas a sede administrativa da Ford para a América do Sul, na capital paulista, o Centro de Provas em Tatuí, em São Paulo, e o Centro de Desenvolvimento de Produto na Bahia.
“Sabemos que essas ações são muito difíceis, mas necessárias para criar um negócio saudável e sustentável”, disse o presidente-executivo da Ford, Jim Farley, em um comunicado. “Estamos mudando para um modelo de negócios enxuto e com poucos ativos, encerrando a produção no Brasil”, seguiu.
Impacto e fla-flu nas redes
O impacto da notícia foi imediato e em vários campos. A montadora montou uma operação na Internet para responder aos consumidores receosos sobre reposição de peças e assistência técnica. No mundo político, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, usou as redes para dizer que o fechamento da Ford “é uma demonstração da falta de credibilidade do Governo brasileiro, de regras claras, de segurança jurídica e de um sistema tributário racional.”
Maia não falava apenas da Administração Bolsonaro, mas como está em guerra com o Planalto por causa da sucessão na Câmara, foi a senha para um novo fla-flu. “A verdade dos fatos: a Ford mundial fechou fábricas no mundo porque vai focar sua produção em SUVs e picapes, mais rentáveis. Não tem nada a ver com a situação política, econômica e jurídica do Brasil. Quem falar o contrário, mente e quer holofotes”, rebateu Fabio Wajngarten, secretário especial de Comunicação do Ministério das Comunicações.
Na indústria e na cobertura especializada, as reações estiveram mais alinhadas com Maia, mas de forma bem mais matizada. Além das queixas sobre as estruturas de impostos brasileiras, vários analistas lembraram que a decisão da Ford não era isolada, mas vinha sendo sinalizada há anos, com anúncios de maiores investimentos na Argentina e, principalmente, com o fechamento da fábrica de caminhões e motores em São Bernardo do Campo, em 2019. O Brasil já vinha convivendo com uma capacidade ociosa de produção de carros, uma situação que foi piorada com a pandemia. No ano passado, as vendas de carros recuaram 26%, com a Ford dominando pouco menos de 8% do mercado.
“Claro que a saída abre os olhos para ver se outra grande empresa não está de partida. O impacto dos empregos no local das fábricas é grande, mas não nacionalmente. Mas há empresas satélites de auto peças, então o impacto na cadeia produtiva é muito grande”, disse Alex Alex Agostini, economista-chefe da Austin Rating, ao EL PAÍS.
A saída da Ford contribuiu para azedar os ânimos sobre o mercado de trabalho brasileiro num momento de desemprego em alta e expectativa de piora, por causa do fim do auxílio emergencial. Também reabriu a discussão sobre a política industrial brasileira, sobre câmbio e produtividade, além das consequências de jorrar dinheiro em um setor, como foi feito com o automobilístico desde anos Lula. O último grande programas de incentivo fiscal, que abarca inclusive importadores, data de novembro de 2018, sob Michel Temer, no valor de 1,5 bilhão de reais por ano. “Os dirigentes da Ford foram os que mais fizeram lobby para que Michel Temer aceitasse prorrogar os incentivos no Nordeste. Foi essa empresa, aliás, que inaugurou a descentralização industrial do setor automotivo, ao construir uma fábrica na Bahia. Mas os incentivos não foram suficientes para segurar a empresa”, lembrou a jornalista Mari Olmos, em análise no Valor Econômico.
Representantes da Ford dizem que a decisão fazia parte de uma reestruturação global de 11 bilhões de dólares já prevista pela montadora dos EUA, da qual já foram contabilizados 4,2 bilhões de dólares até o terceiro trimestre de 2020.
Por EL PAÍS