O ‘home office’ não pode acabar com a inteligência coletiva
Ninguém é uma ilha, escreveu o poeta John Donne. A vida do ser humano é condicionada pelo pertencimento a grupos: os primários, com função emocional, como família e amigos, e os secundários, voltados para uma meta, como colegas de trabalho. No local de trabalho as pessoas se socializam, colaboram produzindo inteligência coletiva, aprendem umas com as outras por meio do aprendizado social, competem umas com as outras e adquirem consciência de classe.
No último ano, a pandemia ampliou os treinamentos e trabalhos a distância, o que pode contribuir para a atomização e também evidenciar os prós e os contras de uma sociedade fisicamente dispersa, mas tecnologicamente conectada. É importante conhecê-los para enfrentar o futuro pós-pandêmico.
Na inteligência coletiva (IC), que é gerada em grupos de pessoas que colaboram, três fatores importam, segundo o especialista Amalio Rey, diretor da empresa de inovação eMOTools: o grupo, a inteligência gerada e a agregação (a forma em que as pessoas se reúnem para articular essa inteligência). Com o home office, o grupo pode ser mais diversificado, conectando pessoas geograficamente dispersas que não trabalham juntas com muita frequência, explica Rey.
Para quem organiza equipes, ou seja, gerencia essa IC, o teletrabalho pode trazer alguns problemas e tornar necessárias novas soluções. No caso de Sole Marcos, responsável por sistemas e suporte em uma empresa de desenvolvimento de software, o teletrabalho em tempo integral é complementado por reuniões em horários fixos e com maior frequência. Se possível, por videoconferência, para que os funcionários vejam os rostos uns dos outros. Ela ganhou concentração desde que trabalha em casa: “Quando alguém tem uma dúvida, antes de levantar a cabeça do computador e perguntar, tenta resolver sozinho. Há menos interrupções”. Os membros da sua equipe participam de todas as reuniões para acompanhar o progresso dos colegas. E o departamento de recursos humanos organiza atividades e competições para manter a coesão do grupo.
O efeito do teletrabalho na agregação, o segundo fator na IC, é complexo. Por um lado, um teletrabalho bem pensado, com ferramentas e um design adequado, pode permitir que sejam feitas coisas em conjunto que não são feitas pessoalmente, sobretudo quando os grupos são grandes, diz Rey, que está preparando um livro sobre o assunto. Existem ferramentas e aplicativos tecnológicos que permitem “estruturar a conversa” de forma bastante eficaz. “Eles introduzem uma ordem que às vezes não é seguida presencialmente”, diz o especialista, “porque a agregação tende a ser mais informal e espontânea, já que o contato direto permite. Mas, por outro lado, se não for bem pensado, faz com que se percam muitas possibilidades que ocorrem no contato pessoal.”
São coisas do atrito cotidiano e informal entre humanos, que também tem suas vantagens: a motivação para fazer um trabalho tem muito a ver com o relacionamento cara a cara com os colegas. “As equipes precisam de ambos: inteligência coletiva e relacionamentos de qualidade”, escreveu nestas páginas Anita Williams Woolley, psicóloga da Carnegie Mellon University. Por isso, existe a preocupação de que parte dessa inteligência e relações seja perdida. Em 2013, a diretora executiva do Yahoo!, Marissa Meyer, chamou seus funcionários de volta ao escritório, não sem um escândalo. “Algumas das melhores decisões e percepções vêm de conversas nos corredores e no refeitório, de conhecer novas pessoas e de reuniões de equipe improvisadas”, explicou à empresa na época.
Em relação à inteligência gerada, o terceiro fator da IC, o trabalho remoto pode permitir que as informações sejam mais distribuídas, e que os dados tratados sejam de maior qualidade, mais contextuais, afirma Rey. O teletrabalho bem concebido requer gerenciamento distribuído e não radial. “Isso significa que as informações e os dados precisam ser abertos e distribuídos em rede, o que contribui para mais resultados inesperados”, afirma o especialista. Há quem qualifique a nova dinâmica de trabalho como smart working (trabalho inteligente). O fracasso, o pouco inteligente, seria reproduzir as formas tradicionais de trabalho presencial, sem aproveitar o novo cenário. Ter medo.
Algumas empresas temem precisamente a dispersão dos trabalhadores, dificuldades de comunicação, diminuição da produtividade e a falta de controle, embora possam economizar nas despesas da sede.
Muitos líderes têm se preocupado com esse impacto negativo na produtividade e na criatividade, reconhece Nick van Dam, diretor de aprendizagem da IE University e do IE Center for Corporate Learning Innovation. No entanto, alguns estudos confirmam que os teletrabalhadores têm sido tão ou até mais produtivos do que antes. Essa produtividade, claro, depende da situação em casa (ter que cuidar de crianças, espaço adequado disponível etc.), do tipo de tarefa e da personalidade de cada pessoa. Como aponta Van Dam, “um escritório de segunda a sexta-feira e das 9h às 17h também não é o melhor cenário para otimizar a produtividade.”
Na Espanha, um total de 30,6% dos trabalhadores poderia trabalhar de casa, pela Internet, pelo menos ocasionalmente, mas em 2019 apenas 8,3% o faziam, de acordo com um relatório do Banco da Espanha. Com o crescimento do teletrabalho, previsivelmente, as empresas terão que deixar de lado o presencialismo congênito, valorizar os resultados em vez das horas e adotar novas formas de comunicação e recompensa. Aqui, a confiança é fundamental: o teletrabalho não pode ser eficaz se ela não existir entre gestores, empregados e colegas, sublinha um relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Essa confiança “pode ser construída de forma proativa pelas organizações, mesmo que as equipes trabalhem remotamente”, diz a OIT.
Trabalho líquido
O teletrabalho é um trabalho líquido para uma sociedade líquida, diz Luis Alonso, professor de Sociologia da Universidade Autônoma de Madrid. “Retirar o corpo do espaço produtivo tradicional —a fábrica ou o escritório— individualiza e descoletiviza a própria ideia do trabalho como um corpo social comum.” Porque o trabalho não é apenas um local de produção, mas um lugar onde as pessoas se socializam e se formam identidades. “A proximidade dos corpos tem sido a base, mesmo emocional, das resistências sociais. Se a proximidade for substituída pela distância, grande parte das resistências é eliminada”, acrescenta o professor. Assim, o teletrabalho pode enfraquecer os laços coletivos, levar à redução dos direitos dos trabalhadores e ao aumento da desigualdade social.
Para os sindicatos, o teletrabalho é um desafio. É difícil organizar os trabalhadores quando eles estão atomizados, destaca Carlos Gutiérrez, secretário de Juventude e Novas Realidades do Trabalho das Comissões de Operários na Espanha. O Ministério do Trabalho espanhol de Yolanda Díaz regulamentou o teletrabalho (mencionado muito brevemente no Estatuto do Trabalhador) por meio do diálogo social entre a entidade patronal e os sindicatos majoritários. “Tínhamos três princípios claros”, assinala Gutiérrez, “o teletrabalho tem que ser voluntário, reversível e complementar ao trabalho presencial.” De fato, 77% dos trabalhadores gostariam de combinar trabalho presencial e remoto, segundo o Grupo Adecco.
Perigos da distância
Antes do coronavírus, o home office era visto como uma panaceia a ser conquistada: economizar tempo de viagem, trabalhar confortavelmente em casa e conciliar melhor a vida pessoal e a profissional. O vírus chegou e 80% das empresas aumentaram o teletrabalho, segundo o Banco da Espanha. De 4,8% dos teletrabalhadores em 2019, passou-se, repentinamente, para 34%, segundo cálculos do Instituto Valenciano de Pesquisa Econômica. Com esta implementação acelerada, os contras começaram a ficar evidentes: jornada de trabalho hipertrofiada, incapacidade de se desconectar, interferência das crianças, estresse, ansiedade…
“O salto foi brutal e nos pegou de surpresa”, diz Belén García Romero, professora de Direito do Trabalho da Universidade de Múrcia. Enviar e-mail não é a mesma coisa que dar aulas a distância, fazer reuniões virtuais e organizar toda a logística. Embora o teletrabalho estivesse sendo introduzido gradativamente nos países vizinhos, na Espanha ocorreu com atraso, à exceção de algumas grandes empresas. “Talvez pela cultura presencialista da empresa espanhola: acredita-se que o trabalhador em casa escapa do controle”, diz a especialista, autora do livro El teletrabajo (Civitas-Thomson Reuters). Um pouco mais de 40% das empresas espanholas que adotaram o teletrabalho na pandemia pretendem mantê-lo, de acordo com um estudo do Conselho Geral de Economistas e da Associação de Graduados e Engenheiros Técnicos da Espanha (Cogiti).
A perspectiva de gênero tem que ser levada em consideração: as mulheres, que já antes da pandemia se ocupavam majoritariamente das tarefas domésticas e dos cuidados (4,1 horas contra 1,7 dos homens), se viram ainda mais sobrecarregados nesta crise, principalmente durante o confinamento, e com o teletrabalho muitas tiveram que se dedicar ao mesmo tempo ao trabalho e às tarefas de cuidado com os outros. O paradoxo: que o que pretendia amenizar as condições de vida acabe resultando em um peso extra. “Por isso, é necessário que os homens também se ocupem dessas tarefas”, insiste Joaquín Nieto, diretor do escritório espanhol da OIT.
Muitos também consideram que os espaços de trabalho e lazer ou da vida familiar devem ser separados, que não é bom que os limites se turvem e tornem a casa uma extensão do escritório. “Em última análise”, conclui Nieto, “trata-se de levar trabalho decente para o teletrabalho.”
Por Sergio C Fanjul – EL PAÍS