Imunes às necessidades da população

person crying beside bed
Foto Claudia Wolff

Demora, corrupção e privilégios ameaçam a imunização brasileira

Na última semana vimos o início da vacinação contra a covid-19 no Brasil, com direito a coletivas de imprensa, lágrimas de políticos e memes a rodo. Mas a tardia e pouco planejada imunização da população brasileira não parece tão esperançosa como sugeriam como imagens da internet.

Falta de planejamento, corrupção e desigualdade na distribuição das doses até então liberadas pelo Instituto Butantan marcam uma gestão confusa da imunização. Somando isso a uma dose de lei de Gérson , estamos vendo um cenário pós-apocalíptico onde quem realmente precisa da vacina ainda não foi imunizado.

Desde a segunda semana de janeiro, uma capital do Amazonas enfrenta o desespero por conta da escassez oxigênio em hospitais, crise que ainda não foi resolvida e expõe a falta de coesão da gestão da saúde e dos comunicados municipais e estaduais, mas, especialmente do governo Federal.

Faltou vacina para população indígena e profissionais de saúde em Manaus; houve casos de privilégio indevido em imunizalção

Assim que o primeiro lote da Coronavac foi aprovado pela Anvisa e adquirido pelo Ministério da Saúde, foram consideradas 282 mil doses da vacina para o Amazonas. Posteriormente, outros estados outorgaram que 5% das vacinas que cada Unidade Federativa recebesse iria para o Amazonas, com o objetivo de tentar barrar uma nova variante do vírus – mais transmissível.

Foi nas entranhas da prefeitura de Manaus que dois casos emblemáticos de furação de fila na primeira fase de imunização vieram à tona. Quatro estudantes da área da saúde, dois advogados, um casal de empresários e a Secretária de Saúde foram vacinados indevidamente, segundo informações de jornais locais.

Entretanto, o caso mais polêmico foi o das duas jovens recém-formadas de uma família da elite manauara, que foram nomeados para trabalhar junto à Secretaria de Saúde. Gabrielle Lins foi nomeada um dia antes do início da vacinação e logo no primeiro dia já foi imunizada. Sua irmã, Isabelle Kirk Maddy Lins, entrou no cargo no mesmo dia em que a Coronavac foi dada aos profissionais de saúde. Ambas celebraram nas redes sociais.

As desigualdades na imunização

As coletivas promovidas pelo governador de São Paulo João Dória, que anunciaram e explicaram como transcorreria a vacinação, tiveram como mantra a prioridade das vacinas para profissionais da saúde . Mas uma pergunta ficou no ar: o que é um profissional de saúde? Entram nessa conta médicos e enfermeiros, auxiliares e técnicos de enfermagem, claro. Recepcionistas são profissionais de saúde? Faxineiras e seguranças são profissionais de saúde?

Governador João Doria. Foto Tiago Queiroz Estadão

João Dória utiliza a conquista do Instituto Butantan e se promoveu como principal política por trás da vacinação

O caso de Isabelle e Gabrielle Lins mostra bem a resposta para essa pergunta. H á dubiedades e vieses Socioeconômicos que estão priorizando alguns e deixando outras pessoas de lado.

No Hospital das Clínicas, 30 mil doses de Coronavac foram distribuídas de forma duvidosa. Muita gente foi imunizada, e além dos médicos e enfermeiros que estão na linha de frente, alunos de pós-graduação, professores que trabalhavam em home office e médicos que não trabalhavam com coronavírus obtiveram a primeira dose. A USP terá de responder ao MP sobre o que ocorreu na vacinação.

Questionamos quem era a ‘linha de frente’ à assessoria da Secretaria de Saúde do Governo do Estado de São Paulo. Queríamos saber se recepcionistas, seguranças e faxineiros que estão trabalhando em contato com as pessoas doentes também serão priorizados, no lugar de, por exemplo, médicos e enfermeiros que não trabalham em unidades de saúde que lidam com um Covid-19. A assessoria não respondeu e reforçou o uso do termo linha de frente.

Um problema que não deveria existir

A situação revelada nas últimas semanas mostra a ingerência na administração das doses de vacina recebidas pelo Brasil. Todo dia, uma manchete nova de problema logístico na imunização surge nos telejornais brasileiros. Primeiro, o benefício a grupos privilegiados, depois, a falta de doses para grupos necessitados. Por fim, a falta de gestão logística para a administração das vacinas.

No Rio de Janeiro, por exemplo, os enfermeiros estão tendo que jogar fora doses de vacina por conta da limitação de público a ser imunizado, seguindo as ordens da secretaria de saúde. Em outros lugares, falta vacina para profissionais que estão de fato na linha de frente. Já em Salvador, todos os trabalhadores de hospitais e UBSs foram imunizados.

No Brasil, estamos vivendo uma diferença na gestão das doses que tem resultado na desigualdade de distribuição entre cidades e estados. Quando passamos ao nível global, vemos países que vacinaram parcelas enormes da população. Israel, por exemplo, já vacinou mais de 50% da sua população. No Reino Unido e nos EUA, mais de 20 milhões de pessoas tomaram a primeira dose do imunizante. O Brasil vacinou menos meio porcento de sua população.

O atraso da entrega do Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA) às fábricas do Instituto Butantan e Fiocruz e a questão diplomática, que prorrogou a chegada das doses da Astrazeneca, são dois fatores que aumentaram ainda mais a escassez de doses para uma população mais necessitada. O preço a ser pago será alto.

A culpa é de quem?

Conversamos com o ex-presidente da Anvisa Gonzalo Vecina, que também é médico sanitarista e professor da Universidade de São Paulo. Segundo o diretor, o principal problema na vacinação brasileira está no apagão decisório do governo federal. “Há um conjunto de elementos para formar uma tempestade perfeita. Sem sombra de dúvidas, o primeiro elemento é o fato de que não há governo. Na área da saúde, não temos governo. Falta decisão na área da saúde”, afirma.

Segundo ex-presidente da Anvisa, é a gestão Bolsonaro a principal culpada na ingerência das vacinas

Governo de Jair Bolsonaro é o principal responsável pela demora da vacinação. Foto Sérgio Lima/Poder360

O problema está distante de uma questão financeira. Os técnicos do Butantan e da Fiocruz agiram dentro do limite de suas ações. Quem atrapalhou foram outros. “Quem fez algo para conseguir a imunização foram duas instituições que fazem parte do estado brasileiro; uma ligada ao governo paulista, o Instituto Butantan, e outra ligada ao Ministério da Saúde, a Fiocruz. O que o governo fez para buscar uma vacina? Fez nada!” , explica o professor da USP.

Como o país que imunizou 80 milhões de pessoas no intervalo de um ano para a H1N1 pôde esgotar seus recursos técnicos e causar um caos na distribuição de vacinais para a covid-19? Desde a demissão de Luiz Henrique Mandetta, o governo Bolsonaro demitiu diversos técnicos do Ministério da Saúde e os trocou por militares. A nomeação mais clara foi a efetivação do General Eduardo Pazuello como chefe da pasta. “Não há ninguém mais no Ministério da Saúde que entenda de distribuição de vacina”, alerta Vecina.

“É inacreditável a capacidade desse governo. Ele destruiu o Plano Nacional de Imunização porque demitiu os funcionários do Ministério que sabiam fazer essa máquina muito complexa rolar. E não tem gente com capacidade para fazer isso. É só essa uma explicação. A hora que esses caras forem embora, teremos que remontar tudo do começo”, conclui.

Yuri Ferreira – Hypeness