Aqui, o final da tarde escureceu, não pelo declínio do sol, que ainda não ocorreu, mas por causa de densas nuvens escuras que chegam.
Aqui, o final da tarde escureceu, não pelo declínio do sol, que ainda não ocorreu, mas por causa de densas nuvens escuras que chegam.
Um silêncio estranho paira no ar. Não se ouve trovões. Também não há ventos próximos à superfície do chão ou nas copas das árvores, mas é certo que são vigorosos nas alturas das nuvens, porque elas se movimentam em grandes e compactas massas, estruturas gasosas gigantescas. Parece que aqui, de maneira literal, estou no olho do furacão.
No Caribe, onde todos os anos ocorrem a temporada dos furacões, os nativos afirmam que, no epicentro do furacão, é sempre tranquilo e calmo, até as laterais do ciclone atingirem a região por onde passou o epicentro. E, então, o que se vê é o mundo vir abaixo, como estamos acostumados a acompanhar nos principais noticiários internacionais.
É como se os deuses, gregos e romanos, num ato de misericórdia momentânea, soltassem todos os demônios de suas cadeias e os mesmos, libertos e eufóricos, dão vazão a uma violenta rebelião por terem estado presos em suas danações eternas. É como se quisessem ir à forra num ato abominável de vingança!
Vejo, desse ponto em que me encontro, uma grande massa de nuvens pesadas, aglutinando-se no horizonte, aproximando-se, vagarosa e silenciosamente, sobre tudo o que os meus olhos veem. Parecem fazer o movimento de um grande cerco em arco, aproximando-se de todos os lados, dando-me a impressão de que o ponto de encontro será sobre o meu pedaço de chão, o meu sítio tão alheio à tudo isso.
O arco precipita a fechar-se em um grande e assustador círculo, dentro do qual me encontrarei, irremediavelmente, sem opções de fuga, como uma frágil criatura, sob as forças ciclópicas e incontroláveis da natureza bruta e ancestral.
É um lindo e assustador espetáculo que desperta inúmeros receios a quem o presencia.
A adrenalina que percebo emergir de todas as minhas células e que frio transpiro me remete às sensações que despertam um daqueles bons e clássicos filmes de suspense do mestre Hitchcock, que assistimos em estado de permanente tensão, onde receiamos tudo descambar para o tenebroso.
Toda essa força titânica acumulada pode desencadear-se a qualquer instante, unindo os céus e a terra num encontro apaixonado, num encontro desesperado, tormentoso de amor e ódio, de querer, de não querer, num jogo hesitante de bem me quer, mal me quer…
Vê-se, em todas as direções, na tela do horizonte próximo, incontáveis flashes de luz que rompem, iluminando o breu dessas nuvens carregadas, uma imensa tempestade de raios e relâmpagos, denotando sua imensa carga de energia concentrada. Acredito que no futuro de luminosos dias a tecnologia conseguirá captar e armazenar a energia dessas tempestades, então, não precisaremos mais represar os rios e nem manipular a fissão nuclear tão poluidora.
Ouço apenas reverberações de trovões longínquos, que aqui me chegam com pouquíssimos e tênues decibéis. São quase inaudíveis. Parecem deuses confidenciando entre eles, travando diálogos furtivos e abafados.
À maneira dos humanos, parecem falar de seus mais profanos e impronunciáveis desejos de luxúria e obscenidades, numa busca obsessiva por prazeres e satisfações que dêem algum sentido à existência…
Na condição de um reles mortal, receio que esses diálogos se transformem em uma orgia coletiva de deuses embriagados ou, em suas intermináveis discussões, descambando para a real efetivação de seus lendários desentendimentos, quase sempre recorrentes nas narrativas dos mitos mais antigos. Assemelhando-se, como nesse exato instante, a uma ópera dantesca, tornando-se assustador.
Esse espetáculo gigantesco precede o que será uma pesada e torrencial chuva, daquelas que não esqueceremos pelo restante do ano inteiro.
Agora, nesse instante, gotas tocam o solo, começa a chuva que desliza de seu Olimpo mundo abaixo. O dia feneceu e a noite chegou. O breu é tão absoluto que sequer consigo ver minha própria mão aberta à frente de meu rosto. É como se todas as formas se espiritualizassem…
Uma densa camada de mistérios esconde o horizonte. Quase tudo passa despercebido de minha limitada visão, suscitando infinitas incógnitas em minha mente, uma viagem repleta de aventuras começa em minha imaginação…
Sinto-me como uma formiga que corre para se proteger de um dilúvio que precipita-se sobre sua pequenez; sou uma criança insegura em noites de tempestades e assombrações… Ouço um ensurdecedor estrondo, desatando sobre minha cabeça que reverbera por toda a vizinhança; um trovão assustador como se Noé repentinamente estacionasse sua arca aqui na região.
Não sei o que fez com que o avô dos semitas parasse por aqui. Talvez, como um dos santos mais antigos, lembrasse, tardiamente, das tantas súplicas e dos inumeráveis rogos que os mortais pecadores e verdadeiros caboclos pantaneiros fizeram no meio do ano passado, quando a terra permaneceu por meses crestada por um sol inclemente e quando o pantanal crepitou em chamas, como jamais antes havia acontecido, lembrando as paisagens dos nove círculos do inferno de Dante.
Noé, o velho e previdente marujo, cuja principal missão foi salvar a criação e quase todas as suas criaturas, cujas barbas lembram-nos uma espessa cortina a descer sobre seu peito e cujo tempo de vida não usamos os anos, mas os séculos para contar, em seu lento singrar, as águas dos céus, nas imensidões dos oceanos alados, entre as mais altas nuvens que declinam milenares neblinas, onde no nascer do sol se avista a curvatura da terra, possa ter percebido o fumo incessante das queimadas a atravessar as mais altas nuvens a dizer-lhe que os arco-íris, talvez, estivessem a correr riscos de desaparecer.
Nos cômodos de sua imensa Arca, onde hoje abriga a legião de todos os espíritos dos animais que peregrinaram pela terra, atentou para o sofrimento de todos aqueles que foram tragados pelas chamas, condoeu-se de ver o desespero dos jaguaretes, dos macaquinhos, das antas, dos cervos e de todas as suas criaturas que pisavam em brasas, que, em pânico e dor, não sabiam que direção tomar, para aonde fugir ou se esconder.
Lembrou-se, então, dos pactos com o Altíssimo e, por isso, querendo poupar trabalho a Deus, trouxe suas nuvens mais carregadas no rastro de sua arca, coberta por musgos remanescentes do Gênesis e as distribuiu, generosamente, por essas bandas do mundo…
As portas dos céus, pois, começam a abrir-se nesse momento, as águas de cima cairão pelas frestas da abóboda trincada da terra e não haverá uma única interrupção por muitas e muitas horas a fio.
Benditas pontes que se vão arrastadas pelas águas barrentas que se avolumam nos leitos que agora parecem estreitos, cuja força nada e nenhuma tecnologia humana detém ou trava!
Benditas as águas que descem dos espigões de norte a sul e dividem as águas ocidentais das orientais, que buscam inexoráveis seu eterno destino, o calmo espraiar na imensidão do pantanal, como se pretendesse compensá-lo pelos males que perpetram a cataclismática condição da existência humana!
Benditas pois, são as santas águas, que fustigam o planalto, trazendo consigo sedimentos, onde milhares de raios energizam o chão como bênçãos, como resultado das convulsões dos céus!
Benditas águas que deslizam volumosas para a renovação necessária que garanta mais um ano de sobrevida ao que restou do antigo e mítico Mar de Xaraés e todas as suas criaturas!
Atentai, deuses do Oriente Médio, deuses de Gilgamésh, de Noé e de Utnapishtim, deuses que parecem esconder-se em galáxias distantes, do outro lado do universo, que parecem hibernardos nos tempos bíblicos, acordai e ouçam os lamentos agoniados dessa terra pantaneira, desse pedacinho remanescente do Éden original!
Por aqui não se respeitam os deuses ocidentais, desprezam a Tupã e a Nhanderu, desalojam da mãe terra os seus devotos, os seus interlocutores ancestrais! Fazem troça de tudo que é divino e transcendental.
Bilhões de litros d’água se derramam sobre essa face da terra, encharcam cada metro do seu chão. Lavam suas costas e os seus seios, deslizando pelas vertentes das serras.
No início, de maneira contida, as primeiras águas profanas deslizam, como num ato de amor sem pressa, como preliminares de maneira suave, entre suas pernas e seu colo. As suas gotículas tocam as árvores e cada uma de suas folhas, e, em movimentos calmos, se insinuam com ternura e carinho sobre os pêlos da terra, suas matas e seu atrito soará como uma composição, como música, lembrando o dedilhar de Chopin por sobre as teclas de seu imortal piano.
Quando as portas dos céus estiverem em sua totalidade abertas, o ritmo será outro, suas águas deslizarão por todos os seus declives, grotas, furnas e meandros mais íntimos, em movimentos vigorosos, em solavancos e estralos, num vai e vem, como num coito, que bate e rebate, numa ansiedade incontrolada, percorrendo sem freios num arfar louco de sons e murmúrios, com a pressa das águas de corredeiras de um rio de pedras, como cascata que despenca sobre rochas, como rebocho de um leito profundo, num desejo incontido por romper, por, literalmente, invadir, como a prenunciar um gozo, num orgasmo resultante de todo seu êxtase, escorrerão rápidas para os córregos, que também transbordarão caudalosos, arrastando uma imensa quantidade de pedras, paus e, então, milhões de toneladas de sedimentos descansarão exaustos, esgotados nas partes mais baixas do relevo.
Noé, antes do amanhecer, retira-se com sua Arca, envolta em densas brumas, carregando consigo, silenciosamente, parte das nuvens, em direção a outros continentes, mas, antes, fará uma parada para descansar no Velho Testamento, nas páginas amarelecidas do Gênesis…
E por último, depois de horas desse banho demorado, depois de todas as carícias possíveis e imagináveis entre os céus e a terra, tudo volta à calmaria anterior. Na escuridão, os últimos pingos de uma fina garoa caem, um a um, sobre inúmeras superfícies, desde folhas, pequenas poças, o calçamento ao redor da casa, trazendo uma melancolia que invade-me por inteiro.
A impressão que tenho é de que esse sentimento pervarde toda a natureza exausta depois de tão intensa e vigorosa atividade.
Assim, os leitos d’água, no amanhecer, terão novos contornos em suas margens. Um novo desenho será rabiscado pelas águas desses rios gasosos que voam, que percorreram milhares de quilômetros para se transformarem, novamente, por essas bandas, em rios terrestres e líquidos.
Tenho concluído que essas revoluções naturais são indispensáveis para a manutenção e renovação da vida.
Cabe a nós respeitarmos nossa mãe natureza que é sagrada! Proviemos dela, não estamos à parte, mas dentro dela, paridos por ela somos seus filhos e sem ela nada seríamos.
Acredito que ainda há tempo e que precisamos ter claro, como o sol que nasce em todas as manhãs, que a natureza vive sem nós, mas nós não existimos sem ela, que as árvores são nossas irmãs, que os pássaros são nossos amigos, que as tempestades nos tornam mais fortes, que as chuvas nos amam e nos saciam.
Somos parte dela, e somos feitos por ela, somos chuva morna represada em setenta por cento de nós.
Posso dizer, sem nenhuma dúvida, que sou chuva com consciência de si mesma…
Essas são as revoluções naturais que assisto extasiado, com encanto e medo, com a humilde gratidão dos mortais por tudo aquilo que o transtorna e emociona, por tudo aquilo que o transcende…
São minhas reflexões sobre o inexorável, sobre o ir e vir das águas, no cumprimento de seus ciclos, sobre o cambiar da natureza, das estações e as suas complexas configurações.
Estão aqui minhas observações, na curta quadra de meus dias maduros em que ouço o tic tac do tempo que segue transpassando a tudo e a todos…
De manhã, bem cedinho, corri ao pequeno córrego que passa a 70 metros nos fundos de minha casa, aqui no sítio. Encontrei-o refigurado com uma nova paisagem, como se a natureza remobiliasse todos os seus espaços nesse final de estação. Vi uma árvore de médio porte caída no chão, tendo suas raízes solapadas pela correnteza, percebi o capinzal lambido pela enxurrada e não encontrei uns paus e galhos engarranchados que permaneceram por meses, numa pequena curva do leito d’água, notei pequenas porções de areia aqui e acolá. A água desliza límpida, sinto um cheiro de vida, de vida nova.
Enfim, o sol brilhava forte e todas as folhas tinham adquirido um tom mais verde, porque as amarelecidas foram derrubadas pelos ventos e levadas pelas águas. A temperatura estava bem amena, havia um novo frescor em tudo, e, então, extasiado, aspirei um ar de uma leveza que há muitos meses não respirava…
Olhei em direção à serra e o meu coração transbordou em encantamento…
E não é que o velhinho Noé não esqueceu de deixar a marca da sua passagem por aqui? Lá estava um lindo e imenso arco-íris no horizonte entre nuvens remanescentes, nesse inesquecível amanhecer!
Um sentimento indizível de gratidão inundou por inteiro o meu espírito, e tive a firme convicção que, depois das tempestades, sempre vem a calmaria e a bonança.
Gratidão por isso…
Sempre gratidão