É bom não abusar

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Foto Andrea Piacquadio

Como estabelecer limites e evitar jornadas excessivas no home-office

“Me vejo trabalhando no home office o dobro do que trabalhava no escritório.” O depoimento é de um gerente de marketing de 33 anos que preferiu não se identificar. Desde que a pandemia começou, ele e os colegas da empresa, em São Paulo, foram mandados para casa e, a partir deste momento, o estresse se intensificou.

“Sempre ultrapasso o meu horário de expediente. Com frequência me vejo às 15h sem almoçar porque simplesmente esqueci. Me sinto engolido pelas reuniões”, conta. “No escritório, o momento de tomar um café ou uma água eram comuns. Hoje, você se sente pressionado a estar on-line o tempo todo, como se o ‘ausente’ do Skype significasse que você está vendo TV e não trabalhando.”

Para o gerente, há uma cultura velada de que trabalhar remotamente significa estar 100% do tempo disponível para a empresa. “Há quem pense ‘você está em casa, não perde mais tempo no trânsito, pode controlar sua agenda, então não tem nada problema ir além’, o que não é verdade.”

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Foto Ketut Subiyanto

A mudança de rotina impactou diretamente na saúde do gestor. “Eu era um exemplo de alimentação saudável e atividade física. Hoje em dia, nada disso procede. Como muitos congelados e delivery por serem opções mais rápidas. Além disso, passo das 8h às 20h sentado. Neste período de home office, não consegui me exercitar um dia sequer. Quando termino de trabalhar, só quero tomar banho e dormir”, revela.

O psicológico também foi bastante afetado. Ansiedade e distúrbios no sono surgiram, sendo necessário a procura por ajuda especializada. “Comecei a fazer terapia. Na pior fase, tentando fugir dos remédios tarja preta, tomava antialérgico para dormir. Controlava a rinite e o sono vinha de bônus.”

A situação vivida pelo gerente, infelizmente, não é um caso isolado. Muitos funcionários, de diferentes áreas e cargos, têm enfrentado verdadeiro esgotamento. Um estudo lançado pela Microsoft revelou que os brasileiros são os que mais relataram a sensação de burnout (estado de tensão emocional e estresse provocados por condições de trabalho desgastantes) durante a pandemia: 44% dos profissionais se sentem assim. Em segundo lugar vem Singapura (37%), seguido pelos Estados Unidos (31%). Mais de 6 mil pessoas em 8 países foram ouvidas.

Como solucionar

Para Sérgio Margosia, gerente executivo da empresa de recrutamento PageGroup, o mercado ainda passa por adaptações. Poucas empresas estavam preparadas para aderir ao home office antes da pandemia e, por isso, algumas enfrentam situações mais desafiadoras que as outras.

De qualquer forma, a solução para encontrar o equilíbrio e o bem estar – para ambas as partes – mora na empatia. “É fundamental ter claro o que os profissionais precisam e o que a empresa precisa. Quando não se coloca no lugar do outro e não se tem flexibilidade, as situações se tornam mais complexas”, afirma.

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Gerencie melhor seu tempo entre trabalho e família. Foto Gustavo Fring

De acordo com Margosia, autogerenciamento e autoconhecimento são habilidades imprescindíveis no home office. “Quando esses dois pilares são conquistados, a qualidade de vida é elevada. É possível se programar, reservar tempo para fazer exercício e estar próximo da família. É importante lembrar que trabalhar sem parar não é saudável e tampouco sustentável. Por isso, limites devem ser colocados.”

E é justamente isso que o gerente de marketing do começo desta matéria está tentando fazer. “Ultimamente as coisas estão melhores porque comecei a declinar reuniões desnecessárias e me impor mais em relação a minha agenda. A terapia também tem ajudado a não me cobrar demais”, diz.

O gestor conta ainda que teve uma conversa aberta com sua superior sobre o assunto, outra dica de Margosia. “É importante ter um diálogo maduro, adulto e chegar a combinados. Mesmo porque, o fit entre empresa e funcionário é essencial. É necessário entender a cultura da empresa e que há profissionais que se encaixam em certas dinâmicas e outros não. Por isso, a conversa deve existir”, aponta.

Os líderes, por sua vez, devem reinventar sua maneira de gerir à distância, um dos grandes desafios do home office. “Gestores têm dificuldade de acompanhar seus times e desenvolver pessoas remotamente, principalmente nos casos de empresas que prezam por oportunidades internas. Formar talentos neste cenário conta com técnicas apropriadas. É necessário também sempre se atentar ao cuidado com as pessoas. Gente infeliz não tem produtividade”, explica Vânia Montenegro, diretora de serviços de RH da Employer.

Para a especialista, a pandemia deu ao departamento de Recursos Humanos a chance de ser protagonista. Isso porque é ele quem vai preparar as lideranças e desenvolver nelas novas competências. Além disso, cabe ao RH consolidar o sentimento de pertencimento em todos os colaboradores, se fazendo presente mesmo longe fisicamente. “As empresas têm responsabilidade com o treinamento de líderes, o que nunca foi tão importante. Devem ainda investir em proximidade por meio de ferramentas digitais. Vídeo, áudio e momentos de descontração permitem que o contato empresa-empregado não seja frio”, acrescenta Vânia.

O que diz a lei

Atualmente o home office está previsto e regulado na CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), no artigo 75, incluído na legislação por meio da Reforma Trabalhista (Lei nº 13.467/17).

O advogado trabalhista Tiago Damiani, do escritório De Lyra&Damiani, atenta para a importância do contrato individual de trabalho celebrado entre as partes neste contexto. “É nele que será definido quais serão as despesas a serem arcadas pelo empregado ou reembolsadas pelo empregador. Assim, é necessária muita atenção, principalmente do empregado, antes de assinar o contrato”, afirma.

Na opinião de Damiani, a regulamentação do teletrabalho na CLT foi importante, porém ainda há lacunas a serem preenchidas. “Entendo que a legislação oferece pouca segurança ao empregado, em especial por possibilitar que o teletrabalho seja implantado através de acordo individual entre as partes.”

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O acordo entre as partes ainda é o melhor caminho para garantir direitos. Foto Andrea Piacquadio

Damiani afirma ainda que muitos empregados possuem pouco conhecimento acerca de seus direitos. Nem todos sabem, por exemplo, que a CLT prevê que quem atua em home office não tem direito a horas extras. Porém, se houver controle de entrada e saída de dados do computador do empregado e fiscalização da jornada de trabalho, o trabalhador terá direito a essas horas. Caso o expediente já tenha sido encerrado e o empregado receber chamadas pelo celular, também fará jus a horas extraordinárias.

Muitas das obrigações das empresas em relação aos empregados estão descritos na Convenção Coletiva de Trabalho de cada categoria profissional. Por isso, é importante ter acesso a ela.

Caso o empregado se sinta explorado, há meios legais para contestar seus direitos. Levantamento feito a partir de dados das Varas de Trabalho mostra que os casos de trabalhadores reclamando das condições do home office subiram de 46 entre março e agosto de 2019 para 170 no mesmo período de 2020.

Para evitar envolver a Justiça, porém, o ideal é usar o bom senso. “Por parte das empresas, é necessária muita atenção para os modos de controle, fiscalização e vigilância do trabalho, pois em nenhuma hipótese poderá existir lesão ou ameaça aos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal. Já por parte do empregado, é importante que ele se concentre em cumprir à risca com suas obrigações diárias e também sua jornada de trabalho, tendo em vista que nos casos comprovados de negligência ou insubordinação, por exemplo, o empregador poderá aplicar justa causa”, alerta o advogado.

Por Marília Montich – Metro