Lamento de um moribundo, numa despedida desnecessária

Sabe irmã, eu tinha tanto apreço por você, mas agora, quando penso em nós, me vem uma profunda tristeza.

O seu voto me negou a vacina, me furtou a cura. As suas tão alegadas boas razões me roubaram o futuro. Suas mãos que tatearam o inconcebível, presentearam-me com a morte.

Sabe irmão, quando lembro dos nossos dias, vejo nossos corpos pequenos e faceiros correndo atrás de bolas pelos quintais de nossas infâncias, vejo nosso sopro apagando velinhas sobre bolos coloridos, vejo sorrisos em todos os rostos e percebo o frescor em todas as faces.

Mas, nesse presente de tristes angústias, suas escolhas me retiraram o sopro de Deus, o fôlego da minha vida.

Queria tanto estar ao seu lado em nossa velhice, olhando nossos netos a brincarem nos gramados verdejantes, mas, infelizmente, apesar de todos os meus rogos, você abriu a porta que nossos avós já haviam fechado, depois de tanto sofrimento e lutas. Você abriu a nossa casa, os nossos lares, permitindo que os coturnos dos fascistas pisassem em nosso jardim, esmagassem nossas flores e sujassem os tapetes da nossa sala com seus excrementos e suas imundícies.

Essa triste imagem sua, movida por seu puritanismo insano, ao abrir a porta do passado para que esses espectros horripilantes retornassem à realidade, conferiu-lhes poder para trazer o pranto, para cobrir nossa terra de lutos continuados. Essa imagem me lembrou a árvore proibida do mítico Éden que não devia ser tocada. Você irmão, tocou na árvore e deu-nos um cesto de frutos envenenados.

Seus joelhos, que sempre se dobraram para o Santo dos Santos, hoje, por uma moral regada a hipocrisia, dobrou-se para nossa perdição, diante de um mito, um dos quatro cavaleiros do apocalipse, aquele que disse ser especialista em matar e mentir.

Agora vejo que você ignorou todas as minhas profecias tão somente pelo fato de que sou de casa, mas mesmo agora, depois de todas as evidências contundentes, não consegue perceber que você é uma daquelas das quais as profecias de João se referem, “estava eleita, mas se deixou enganar”.

Você é uma daquelas que falam sobre o fechamento da Porta da Graça, que diz que quem é mau continuará mau e quem é bom continuará bom, não podendo mais, para seu melancólico destino, transitar de um lado para o outro.

Por acaso sabe tu qual o significado da palavra mito? Se não sabes, eu lhe digo que significa mentira!

Contudo, o mais lamentável é que, depois de morrerem mais de meio milhão de almas, você continuará apoiando esse descaso, esse governo de genocidas que muito mal dissimula suas práticas criminosas e a iniquidade de suas mentes psicopatas!

Não há mais subterfúgios possíveis para tentar justificar tantos erros, tanta prática criminosa, não há nada de plausível para continuar emprestando apoio para assassinatos em massa, mas, se tudo isso ainda não lhe basta, não lhe convence, olhe, então, para mim, tenha coragem de mirar o fundo de meus olhos assustados e veja que, seu irmão, seu amigo de tantos anos, está morrendo junto deles todos.

Sou como um peixe febril, entre pedregulhos afiados, me debatendo fora d’água, meu corpo dói uma dor nunca antes experimentada ou sentida.

Estou sendo torturado, impiedosamente, pelas práticas do sádico que você elegeu, do covarde que você convidou para sentar no melhor lugar ao redor de nossa mesa.

Ah, meu amigo se eu tivesse que escolher a minha morte, certamente não seria entre esses estertores de sofrimento e tortura, suplicando desesperado por cada tênue molécula de ar que flutua indiferente na minha frente. Necessito de milhares delas, mas, infelizmente, só algumas me chegam.

É desesperador, elas me são insuficientes!

Sou como um boneco de barro inerte, suplicando a possibilidade de vida, diante das mãos insensíveis de um criador indiferente que me nega o sopro em minhas narinas, nega minha necessidade de vida, nega-me o alento vital!

Você sabe o que é morrer assim?

Como alguém, por semanas perdido num deserto de solo lunar, sob o escaldar de inclemente sol, aonde se procura beber as gotas de seu próprio suor e as lágrimas de seu amargo pranto?

Não, você não sabe o que é morrer de sede na beira do mar, porque você sequer conseguiu entender que o mal, que o assassino viria disfarçado de ovelha camuflada pelos seus próprios medos e ignorância, pela sua cega fé.

Porque, porque ainda pergunto, porque ainda insisto em saber, porque minhas indagações são como ecos que não cessam? Porque irmã, não deste crédito aos meus alertas.

Lembra-se quando falei que isso poderia custar a minha própria vida e também o futuro dos meus filhos? Lembra que o meu rogo emocionado, quase chorado, era para abrir-lhe mais do que a mente, mas, sobretudo, para abrir o seu coração à nossa irmandade que corria riscos de se perder, diante da tempestade que viria nos atormentar em alto mar?

Eu queria acreditar que nosso amor era o único navio de resgate, mas, diante de sua recusa de atender aos meus aflitos apelos de então, infelizmente, agora estou morrendo afogado num vácuo de ar…

O navio de resgate de nosso amor foi rasgado como folha pelo iceberg que vc subestimou, afundou-se numa fossa abissal do fundo oceânico gelado e sombrio…

Hoje, por sua escolha infeliz, fui expulso do paraíso da vida.

Sabe, irmã, sua fé cega que nunca permitiu outra reflexão razoável, fez-nos a todos tatear na mais escura realidade, nos impondo tempos sombrios, onde seus ídolos escarnecem dos que sofrem no desespero da fome, na aflição da doença e na eminência da morte! Eles escarnecem de mim, me chamam de maricas, eles riem de minha agonia.

Lembro-me de quando éramos inocentes, quando corríamos felizes atrás de borboletas de asas translúcidas. Lembro que, nos finaizinhos de tarde, quando o sol lançava seus últimos raios sobre o mundo, corríamos para o banho com medo dos Sacis Pererês que chegavam no início das noites para nos assustar.

Quando deitávamos em nossas camas, cujos colchões guardavam capins secos do campo, cujas cores lembravam ouro, sonhávamos com dias iluminados, com pássaros de calda longa e com as cigarras cantantes, sonhávamos com cachorros que falavam, com coelhos que dançavam e com gatos que usavam chapéus amassados.

Mas hoje perdemos o sonho, seu analfabetismo político nos roubou a esperança, nos submergiu num pesadelo tão profundo, que ao nos debatermos para fugir e despertar, acordamos dentro de outro pesadelo ainda mais tenebroso!

Tua escolha me prendeu dentro dessa realidade maldita, dentro desse pesadelo sem fim, sem nenhuma luz no final do túnel. Pressinto meu triste fim, aproxima meu derradeiro instante. Me consola pensar que, entre todos de nossa família, serei dado em sacrifício para a expiação de vocês e de outros mais.

Saber que minha morte será útil aos que amo, que o livramento vem através de meu passamento, traz algum sentido e faz da morte algo aceitável. Agora, lembro das profecias que diziam que nos últimos dias muitos desejariam a própria morte, que muitos pedirão para que os montes caiam sobre eles, que a angústia seria insuportável.

Quero a morte, que ela venha rápido, não aguento mais, não aguento a dor de meus últimos espasmos de vida! Sabe amiga, estou muito cansado, meus ossos doem e meus pulmões secaram.

Parece que agora tenho 100 anos de dores, elas não cessam e me roubam qualquer minuto, qualquer mísero segundo de paz.

A dor “desindividualiza” a natureza do tempo e a sua cadência, os segundos se convertem em horas que demoram a escorrer e os minutos se tornam em dias arrastados e intermináveis!

Mas, quando eu estiver fazendo a passagem, quero caminhar por um longo túnel de luz, onde verei, no horizonte, um imenso quintal gramado e onde haverá muitas crianças brincando com cachorros que falam, com pássaros de calda longa, onde verei muitos coelhinhos e gatos usando chapéus amassados.

Quero ser criança novamente, quero quintais, quero balanços e pássaros, quero o barulho de cachoeiras, quero contemplar pipas no azul do céu, quero voltar a tomar banhos de enxurradas, quero chuvas dos meios dias, quero borboletas e cigarras.

Sei que minha hora derradeira bate à porta, sei daqui por diante nunca mais serei, mas quero ir sem perder a esperança nos que ficam.

Quero acreditar na alma humana, na beleza da amizade. Quero acreditar na possibilidade de um mundo justo e sem desigualdades, mais fraterno. Aquele mesmo mundo que vivia em nossas mentes pueris, com chances de um futuro feliz e abençoado.

Que a Graça e a misericórdia do Senhor permaneçam ainda por muitos séculos sobre a terra e seus viventes e permita que a próxima geração possa corrigir tudo que, diante do nosso livre arbítrio, fizemos de errado e diferente de tudo aquilo que nos foi de bom reservado.

Estou delirando, sinto muita dor em cada milímetro de meu corpo. Tudo está muito estranho, agora não sinto mais meu corpo, a dor passou. Sinto paz…

Tudo ao meu redor se distorce, vejo luz e percebo uma criança translúcida que, de cabeça baixa, anda ao lado da cama que estou, mas que não mais sinto. Parece preocupada, acredito que ela veio me buscar. Quero ir com ela passar pelo túnel de luz, atravessar o rio do esquecimento, cujas águas mornas levam todas as dores humanas.

Agora, irei voltar para o vazio imaterial, serei elemento que a física não conseguirá mais tanger e nem mais aferir. Lá onde não tem e tem crianças.

Juntarei-me a todos que por aqui passaram num único e imensurável vazio, onde o tempo e o espaço não mais existem.

Serei novamente misturado, para que depois, não sei quando, possa eu ser estabelecido ou apenas uma ínfima centelha de minha consciência noutra conexão, numa nova realidade que desconheço, num destino sensível, tangível, semi materializado em algum momento nos confins deste ou de outro universo possível.

De qualquer maneira nunca mais serei eu novamente. Mas, quem sabe, serei outra síntese do todo ou parte imprevisível de um todo que pressinto, mas do qual nada sei…