“Escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente, a minha própria.”

Ontem à noite vieram pensamentos estranhos à minha mente.
Não sei se delirei, talvez estivesse com febre e nem tenha notado, por estar debaixo de uma coberta muito quentinha e acolhedora.

Era por volta das 9 da noite, quando cheguei da cidade, deitei e dei uma cochilada.

Curtas palavras me vieram à mente como um mantra. Elas se repetiam, parecendo quase não mudarem, umas em relação às outras. Exatamente como folhas de uma mesma árvore… eram monossilábicas.

Senti que algo, ou alguma energia, estava por trás daquele fenômeno, como se quisesse me mostrar um tesouro muito antigo e raro.
Era para que eu decorasse ou escrevesse.

Essas pequenas palavras caiam escritas nas folhas verdes desgarradas de uma árvore próxima e, por um breve lapso de tempo, mostrava a face escrita. Antes de chegar ao chão, a folha girava sobre si mesma e mostrava sua face contrária, onde nada havia sido escrito e, então, eu perdia a palavra.
E assim se deu de maneira insistente e repetitiva.

A impressão que me dava, no momento em que tudo acontecia, era de que fosse algo muito antigo e ancestral, onde a linguagem era precária, quando nossa espécie estava ainda soletrando as primeiras sílabas da civilização.
Cheguei a pensar que pudesse ser a escrita de um dos primeiros poetas ou místico de alguma aldeia perdida do oriente antiquíssimo. Algo de 7 a 10 mil anos atrás, talvez…

Despertei intrigado e, ainda sonolento, procurei, lentamente, fixar o que havia visto de maneira delirante.
Tentei lembrar, mas as imagens fugiam, quando parecia que as veria. Tentei limpar meus pensamentos para poder lembrar e a sensação era a mesma que acontecia no sonho, ou no limbo do qual havia acabado de chegar. Quando parecia que ia conseguir lembrar, só aparecia a face não escrita das folhas que caiam.

Ainda deitado, tentei capturar as imagens das palavras perdidas. Tentei, por um tempo que não saberia precisar, e não consegui lembrar de nenhuma delas.

Depois disso, não consegui mais dormir e passei a noite em claro.
Ouvi os galos cantarem na madrugada.
Ouvi os primeiros trinados dos pássaros, escutava os ventos, consultava o relógio do celular de meia em meia hora, na ansiedade pelo amanhecer. Insônia não é agradável. Mas há de se fazer justiça a esses dias de face sombria, porque há também as insônias criativas que chegam a valer a pena.
Portanto, vi o dia clarear, e, nas primeiras horas de luz, fazia muito frio. Esperei esquentar um pouco mais e, então, me levantei.

Saí de casa e fui entregar uma encomenda vinda de longe.
Eram casacos e agasalhos, comprados e a mim enviados, para uma doação específica. Eram para idosos carentes, nossos vizinhos.

Foi uma manhã muito especial e comovente. Pude ver idosos eufóricos, parecendo crianças novamente, vibrando a cada pacote que se abria. Carinhos e cuidados transformam velhos adoentados e desesperançados, com razões suficientes para o mau humor, em crianças alegres e radiantes.
Tantos presentes novos, algo que, talvez, nunca tenham recebidos em suas vidas.

Luvas, toucas, cachecóis, calças, casacos, pulôveres, ponchos, dezenas de pares de meias e cardigans.
Tudo para amenizar o frio que, certamente, doía no corpo e na alma dos presenteados.

Ao retornar para casa, me senti extremamente cansado e quase vazio.

Peguei uma cadeira e sentei-me à sombra e comecei a pensar sobre o sonho que tivera, sobre os idosos que perverteram o tempo e se transformaram em crianças, pensei na mulher generosa que os proporcionou as tantas e tão simples alegrias…

E como gestos assim são transformadores…

As horas foram escoando como filetes de água da mina, e continuei sentado, esperando chegar bichos pelo quintal.
Eles não vieram. Senti algumas picadas de mosquitos invisíveis que arderam em alguns pontos do meu corpo, mas permaneci, aguardando uma visão dos pequenos animais. Eles me fazem muito bem, são, à maneira deles, os meus próximos, os meus interlocutores preferenciais.
Quando cultivamos uma radical solidão, cada detalhe dos elementos que nos cercam passa a ter uma relevância inusitada.
A gente percebe que tudo que existe exala uma translúcida energia. Há encanto em cada detalhe da natureza, em cada folha morta inerte no chão, em cada sopro da invisível brisa, na dança dos galhos das árvores que se roçam, na palma que pende cansada do coqueiro silencioso, nas galinhas distraídas que sentam em pequenos grupos ao meu redor, sob meus pés empoeirados, e aproveitam, com seus bicos, para procederem uma limpeza em suas penas, no sabiá ligeiro que prospecta minhocas no úmido chão para seu café vespertino…

Senti frio, apesar do sol da tarde.
Com um pouco de febre, senti náuseas.

Mas sei esperar… Sei contemplar…

Quando sinto meu corpo adoentado, baixo meu metabolismo, controlo a respiração, evito qualquer esforço, me entrego a lassidão. Acredito que, quando chegar minha hora derradeira, não me apegarei, ansiosamente, à vida, como um guerreiro que se nega a morrer. Creio que me entregarei sereno e sem medo, pervardido pelos sentimentos de lassidão e gratidão misturados.

Enquanto percebo tudo isso, mesmo sentindo um pouco de febre, aproveitei para dar uma volta mental ao mundo e me detive um pouco sobre nossas vidas, nesses dias de mortes cotidianas. “Vivam os mortos porque neles vivemos”, disse-nos Clarice Lispector.
Acredito também que morremos um pouco com eles, um pouco de nós se perde para sempre…

Aquelas pessoas que estavam a pouco do nosso lado, que, num piscar de olhos, num descuido momentâneo, desaparecem de nossas vidas e cotidiano, somem para sempre como fumaça, levadas por ventos repentinos e estabelecem, com seu desaparecimento, um enorme vazio permanente em nossas existências.

Continuei à sombra a divagar pensamentos aleatórios, ruminando elucubrações mentais, acariciando reminiscências…

Não seriam nossos próprios corpos as sombras de nossas almas? As árvores e tudo na natureza não seriam reflexos de uma infinidade de espíritos que compõem o universo? Respondereis à mim, Deus nos dirá ou a física quântica nos dará a mesma resposta?

Enquanto isso, observei a dança das folhas secas no chão, o se arrastar daqui prá lá e de lá prá acolá, seus rodopios lembravam crianças agitadas em horário de recreio escolar.

Aqui geou, na última frente fria, e secou boa parte das folhas de muitas árvores.
As aroeiras mais velhas foram as que mais sentiram o rigor do frio.
Tem ventado muito nessa época de meio de ano e tem sido assim todos os anos, a repetição desse ciclo natural.
Então, quando uma lufada de vento balança algumas árvores do vasto quintal, o quê se vê são chuvas de folhas amarelecidas, de todos os formatos e tamanhos, declinarem ao chão. Embora triste, é bonito de se ver e perceber que elas trazem e espalham também um pouco de melancolia.

Sequer consegui ler hoje, a febre me inibiu. Fiquei observando as folhas e seus movimentos e as chuvas delas, ora aqui, ali e acolá.

Cóu, có cóu, cóu có cóu, canta a rolinha escondida entre os galhos de uma árvore às minhas costas e, depois de uma sequência longa, ela silencia. Então, uma outra rolinha, pelo menos cem metros distante, responde cóu, có cóu, cóu có cóu e assim elas conversam. Depois, silenciaram. Acredito que se encontraram e devem estar se conhecendo, ou até namorando, de maneira discreta, nesse instante…

O tempo escorre lento como água preguiçosa. Pensando bem… o tempo não existe, o que existe é a sucessão dos fatos, o exalar de uma infinidade de energias, é a rotação dos astros, é o caminhar de todas as coisas em seus próprios ritmos e a eternidade é a somatória matemática de tudo isso…

Quase escurecendo, uma cotia apareceu em busca de algum alimento. Andou sobre tapetes de folhas amarelas e marrons. É interessante notar que suas pisaduras sobre o tapete de folhas não emite nenhum barulho perceptível. Ela é tão discreta e cuidadosa que parece flutuar com suas patinhas que lembram gravetos. É como se trouxesse, por companhia, uma pequena bolha de solidão em seu pequeno âmbito. Não encontrando nada para comer, desapareceu, logo depois, deixando, no seu lugar, mais um pouquinho de solidão…

Hoje me senti folha seca à deriva, diante dos ventos secos de julho e agôsto, me senti uma cotia solitária, trêmula de febre entre folhas mortas…

A tarde findou e a noite cobriu todas as cores com seu manto escuro.

Mesmo assim encontrei alento na força do hábito e tomei um banho gelado. Banho é sempre bom, além de necessário. Gelado, me senti pedra úmida de córrego lambida por capins molhados…

Aqui, permaneci e pensei: “gracias a la vida que me hay dado tanto, me deu dois luzeros, me hay dado o canto…”
Graças a Deus tenho o que comer nessa noite. Bananas, pão e uma camisa limpa me bastam e me fazem lembrar de Pepê Mujica e a sua busca pela constante serenidade…

Pensei nas cotias, mutuns, macacos e quatis e, depois de prender as galinhas, coloquei um punhado de milho, num coxo de madeira estendido no chão da reserva de mata, para os silvestres famintos que, porventura, venham me visitar.

Então, depois disso, escrevi esse relato para me sentir vivo.

Espero que o sonho se repita, qualquer noite dessas, para que eu possa ler nas folhas que caem as palavras balbuciadas há milhares de anos, porque suspeito que elas, tanto as palavras como a generosidade humana, salvam e alimentam.

Abilio Borges