O lendário poeta norte-americano Bob Dylan, compôs uma canção, mundialmente conhecida: Blowin’in the Wind, onde ele diz que todas as inquietações e indagações humanas serão, um dia, elucidadas pela voz dos ventos…
Era bem cedo e a manhã invernal despertava fresca, quase fria.
Estava, eu, sentado, observando por quais brechas os pintinhos escapavam do galinheiro.
Todos os dias eu os pegava soltos no quintal para o deleite de algumas aves de rapina que esperavam sorrateiras escondidas nos galhos das árvores próximas. Enquanto isso, e ao mesmo tempo, prestava atenção num tucano de grande bico amarelo.
A impressão que nos dá é que o bico pesa mais do que seu próprio corpo. Ele estava degustando amoras, logo atrás do galinheiro. Olhava em minha direção, com certa desconfiança, enquanto engolia amoras maduras. Devia se perguntar: “por que aquele ser bizarro tanto me olha?! Será que nunca viu um tucano comendo amoras na fresca da manhã?”
Enquanto o tucano grasnava, desconfiado, e os pintinhos piavam inquietos, eu ouvi vozes de mulheres que conversavam entre si, vindas da direção do caminho de entrada do sítio. Não me virei por calcular que elas vinham se aproximando sem nenhuma pressa. Então, esperei que se aproximassem mais algumas dezenas de metros, por estar prestando atenção nos pintinhos e no tucano.
Quando calculei que estariam entrando no meu quintal, me virei para saber quem eram. Tive uma grande surpresa, por não ver ninguém chegando e fiquei intrigado. Da onde vinham aquelas vozes que pareciam ser de mulheres, que passeavam sem pressa e conversavam tranquilamente? Fiquei tão intrigado que olhei naquela direção onde também estava um grupo de galinhas, que num círculo, juntas bebericavam ao redor de um cocho d’água. Cabeças abaixadas, umas bebiam, outras ciscavam. Até achei que estava ficando doido, e duvidei de minha sanidade!
Será que as galinhas estão conversando entre si com vozes humanas? Cheguei a arrepiar!! Será que estou delirando numa espécie de encantamento bizarro? Será que estou vendo coisas loucas por estar tão isolado e sozinho?
Esqueci dos pintinhos e do tucano e fiquei olhando naquela direção com meus ouvidos atentos, tentando desvendar o enigma. Retomei a lucidez ao constatar que, definitivamente, não eram as galinhas que falavam como os humanos.
Passados alguns poucos instantes, notei algo simplesmente extraordinário! Aquelas vozes nada mais eram do que o som dos ventos que balançavam os galhos, uns contra os outros, dos pés de eucaliptos que ficam na entrada do quintal, misturados ao farfalhar das folhas desses mesmos galhos, que, por sua vez, se misturavam aos sons das folhas secas do chão que se movimentavam, somados ao atrito agudo do vento com a tela que delimita o espaço do pátio do galinheiro.
Simplesmente extraordinária essa conjunção de sons que, de tão perfeita, se assemelha a vozes femininas!
Por estar de costas, tive a preocupação de associar os sons e a sua musicalidade mais aguda à imagem das mulheres. Isso ficou por conta da dedução lógica e um pouco da minha imaginação! Foi, então, que somente por isso, consegui ouvir a fala feminina dos ventos!
Os ventos interagindo conversam com os elementos e a natureza possui essa eloquente linguagem com seus signos e murmúrios! Para confirmar minha impressão, e me certificar dessa inusitada descoberta, virei-me de costas, outra vez para ouvir.
Sim, era essa orquestra encantada que ouvi! Era a harmonização musical de todos esses movimentos entrelaçados e aqui elencados.
As brisas e a sua fala lembram o timbre da voz feminina. Elas se parecem com o linguajar de moças que conversam entre si, quando andam, com seus vestidos, imaginariamente, coloridos, em estradas semi desertas ou pelos parques da cidade.
As brisas trazem suas falas distantes, agudas e entrecortadas.
A agradável voz dos ventos é essa combinação de sua força em atrito com as telas metálicas, o ranger de galhos lisos que encostam, uns nos outros, somados ao alarido das folhas secas.
Lembrei-me, então, dos duendes que os bretões viam na penumbra de seus bosques encantados, narrados em fábulas e estórias. Nesse caso, o movimento dado pelos ventos aos galhos, árvores e folhas, desenham formas que, combinadas com os sons que ouvi, dão vida a esses pequenos seres encantados, narrados nas memoráveis fábulas de nossas infâncias.
Portanto, não pensem que estou a enlouquecer por ouvir os ventos falantes, não pensem que possa ser excesso de solidão, que o homem no seu distanciamento padece de alucinações ou mesmo de delírios.
Peço que não se equivoquem com minhas afirmativas só pelo fato de nunca terem prestado atenção a essas moléculas invisíveis de vida que carregam sementes, as espalham, generosas, em suas peregrinações entre as matas, árvores e campos.
Vossos ouvidos estão acostumados
apenas com barulho de carros e aviões, com músicos e com os cantos populares. Estamos meramente acostumados às nossas próprias vozes.
Lembro com saudade das muitas e muitas vezes, quando nas encostas das serras, em dia de muito calor e secura, ouvia os assobios dos ventos apressados, que me traziam a sensação da eternidade. No entanto, nunca ouvira, até então, a fala e o cochichar feminino das brisas.
É indizível a alegria que me invadiu a mente e o coração, quando percebi que não havia mulheres chegando pela estrada do sitio. Era a encantadora linguagem alada dos ventos céleres; era o cochichar das lufadas, conversando com árvores e com outros elementos, no ambiente desse sítio aonde me isolo, me refugio e permaneço distante do burburinho do mundo.
Apesar de uma crescente surdez que se apossa de meus ouvidos, que, muitas vezes, me leva a pedir aos meus interlocutores que repitam suas falas, ainda consigo ouvir os murmúrios da natureza, dos ventos e os assovios das cobras.
Me é necessário conhecer alguém que tenha ouvidos para o intermitente assovio das caninanas para que possamos conversar e trocar impressões. As lindas e hipnotizadoras cobras caninanas, coloridas e enormes, emprestam, por sua vez, sua beleza e encanto às matas e aos quintais…
Agora, tenho valorizado o silêncio humano das manhãs e das tardes vivenciadas no meu pedaço de terra emprestado por Deus. Agora, estou atento ao linguajar da natureza, aprendendo, aos poucos, os seus inúmeros idiomas.
Cansei-me das vozes humanas, que falam muito e dizem quase nada. Que tratam as sagradas palavras com negligência e estupidez!
Cansei-me daqueles que fazem das palavras uma arma aguda com seus impropérios e palavrões!
Cansei-me daqueles que transformam as santas palavras em armadilhas, proferindo mentiras para falsear a realidade e enganar as pessoas de boa fé.
Cansei-me dos discursos eivados de hipocrisia de nossos dias tristes…
Cansei-me dos intolerantes que utilizam as palavras para hostilizar e ofender!
Cansei-me daqueles que prevaricam silenciando, calando as palavras diante dos maus feitos!
Cansei-me da demagogia daqueles que medem grande e cortam pequeno…
Sei do poder dos verbos e das palavras, mas sei também do quanto são inócuas e desprezíveis, no estalar das línguas dos insensatos e insensíveis!
Dylan, o mago das palavras, o grande poeta, a quem admiro e reverencio, imortalizou o seu sussurro poético em Blowin’in the wind:
“Quantos caminhos o homem deve andar, antes que seja aceito como homem?
Quantas vezes deve o homem olhar para cima, para poder ver o céu?
Quantas mortes ainda serão necessárias, para que se saiba que já se matou demais?
Quantos ouvidos o homem deve ter, para ouvir os lamentos do povo?
Quanto tempo pode uma montanha existir, antes que o mar a desfaça?
A resposta, meu amigo, está caminhando com os ventos, a resposta está nas asas
dos ventos…”
Dylan também diz em tom profético em outra canção “The Times They Are A Changing”, cuja tradução é mais ou menos assim, Os tempos, eles estão mudando…
Chegou o tempo de ouvirmos o linguajar dos ventos e das brisas.
Abílio Borges