Senhor, sei que é meu Salvador, salva-me desde a sua Cruz, todos os dias de mim mesmo
Salva o que resta de mim, meus cacos, pedaços tortos e ressequidos como folhas de outono que jazem sem esperança de arvorar-se uma outra vez.
Salva-me de meus maus pensamentos, do meu suspeitar mal, de maldar as pessoas apenas por serem limitadas como eu e por serem também diferentes de mim.
Salva-me Senhor de meu ego, do orgulho estéril e tolo que trago impregnado como osso fossilizado em meu soberbo espírito, quebra todos os espelhos narcisísticos da minha alma exclusivista.
Salva-me de meus desejos de luxúria insaciáveis, de meus impulsos libidinosos, de minha fogosidade incansável, de minha imaginação sem limites com todas as mulheres possíveis, até àquelas com quem cruzo nas ruas, as quais me deparei uma única vez em minha existência. Retira de minha mente essa vontade recorrente de querer beijar a vulva feminina como uma imagem sagrada, como as mãos alvas do Papa, como um objeto de culto, como um pão nosso de cada dia me dai hoje.
Senhor, transforma-me num anjo qualquer, daqueles sem nenhum desejo, apenas executor de Suas santas vontades, retira-me o livre arbítrio, arranca de mim a sua imagem e semelhança, reduz-me à condição de inseto que vagueia sem rumo à noite e encerra seu destino no quentinho estômago de sapos, devolva-me ao pó como eu era, salva o restante desse arremedo humano em que me transformei. Leva-me ao tempo anterior de minha humanidade, resgata-me da materialidade e recolha-me ao núcleo sagrado, à centelha íntima de Seu Santo Espírito e então carrega-me contigo, por onde sua onipresença apontar, por todos os dias da Sua eternidade!
Transforma-me, num único individuo de uma espécie em extinção, livra meus filhos do atraso que sou, do pai desnecessário que me converti, pois não estar dentro de seu pacto me faz desprezível. Assim a tormentosa existência se encerra em mim, que eu desapareça e os filhos e filhas que criamos em sociedade, sigam livres em suas peregrinações e mantenham suas linhagens. Retira-me desse plano e se for possível, usa-me em seus projetos futuros como uma experiência vegetal, transforma-me em árvore, em água corrente a quebrar-se em cascatas ou me faça amálgama de minerais de uma rocha no ápice da montanha a mirar, até a eternidade, os nasceres e os entardeceres do sol sobre os horizontes que transpõem os vales perdidos da civilização, de uma Xangri-Lá, de um Éden escondido.
Talvez, quem sabe, seja mais apropriado transformar-me num único, úmido e gelado grão de areia no fundo sombrio e abismal de uma fossa abissal do mais profundo oceano terrestre, sem jamais perceber a luminosidade das estrelas. Resignado ficarei como moucas pedras que recebem sobre si as águas ininterruptas das cascatas que declinam violentas como brancas cortinas descerradas no despenhadeiro.
Senhor, Senhor arrebata-me, abduza-me e leva-me em uma de suas naves, como fez com Enoque ou Elias levando-os para outro continente para estabelecerem novas linhagens sagradas ou mesmo para outra de suas estrelas do céu, transforma-me em um outro Adão e instala-me num outro Éden como pai de outro mundo possível onde a paz e o amor permaneçam para sempre! Um mundo de árvores, de nuvens brancas e azuis, um mundo de regatos, rios e lagoas, de arco íris múltiplos e permanentes como as auroras boreais, um mundo acima de tudo inumano. Senhor, ouvirei apenas de sua voz, farei as Suas infalíveis vontades, não comerei da fruta proibida e nem reivindicarei através dela a minha humanidade e o meu direito de pecar, nem profanarei minhas semelhantes, não oferecerei para minha companheira e nem proferirei mentiras afirmando ser ela a primeira a romper o equilíbrio original das coisas. Não Senhor, não pecarei duas vezes como seu primeiro Adão!
Usa-me em suas experiências de povoar galáxias e universo afora, disseminando a vida. Lance mão de todos os átomos e moléculas que me compõem, porque são, em primeira e última instância, propriedades exclusivas de Sua soberana vontade. Aceito suas aventuras siderais, participo delas com o entusiasmo de um principiante curioso e humilde me submeto a elas, desde que me retire desse mundo onde encontro-me fragmentado em um milhão de partes desencontradas e que se colidem como átomos e moléculas super aquecidas desencadeadas pela explosão original. Senhor, cansa-me, exaspera-me tão intensa e inexorável volatilidade!
Senhor, és por acaso ou de propósito, um mosaico de trilhões de partes espalhadas pelo universo e revelados em pequenas partículas, em livros sagrados, em signos indecifráveis pela história e pelas civilizações durante os milênios de nossa peregrinação?
Busco-o desde minha mais tenra infância, desde a noite escura de meu aniversário de seis anos, quando algo misterioso e assustador, sem mãos ou braços, me examinou por cima do humilde e marrom cobertor que me aquecia. Desde essa noite assustadora acalento seus sinais, necessitei a vida inteira contemplar sua face ainda que de fugaz passagem, sem cobertores entre nós, sem olhos fechados pelo medo e poder ver a sua glória, ainda que estivesses de costas no claro de um dia fresco. Se por ventura, tivesse o privilégio de ouvir apenas um murmúrio Seu, me consolaria de maneira definitiva!
Mostra-me Seu santo semblante feito um holograma à distância, sei que de perto me cegaria, pois nem todos os mais densos cobertores do mundo sobrepostos poderiam ocultar a Sua luz! Sussurra, pois, em meus ouvidos e diga-me, “filho, passei por aqui” … Então, toda minha angústia se extinguiria para sempre Senhor!!
Só assim estaria salvo dessa solidão, desse vazio sem fim, que como um monstruoso leviatã, me espreita com olhos de fogo querendo me consumir e me diluir com seus ácidos em suas horrendas e abismais entranhas. Sua voz, apenas um murmúrio seu faria com que a solidão e esse vazio não me destruam, mas que me sirvam de fiéis e leais companheiras, que me sirvam de sábias conselheiras a fazer-me conhecer a mim mesmo.
Então, abriria mão de todos os desejos, de todos os prazeres, dos pequenos caprichos, de todas as riquezas mundanas por uma pequena e transcendente sílaba, por um breve til, proferido dos céus e dirigido à minha mediocridade, o seu nada seria meu deleite e toda a minha plenitude!
Não mais ouviria meus lamentos, nem minhas tolas indagações, não O perseguiria mais como um cão farejador que não se cansa de ladrar pelas madrugadas insones, nem lhe cansaria com decoradas ladainhas sem fim de um crente devoto a suplicar-lhe recorrentes favores ou nem mesmo seria como esse lunático que sou buscando algum alento e um pouco de serenidade nesse mundo de loucos.
Enfim, Senhor, lhe daria como oferenda de gratidão, como um sacrifício sobre um altar de pedras não polidas, sossego e paz contínuas por não mais ter que ouvir minhas lamúrias.
Levaria para sempre em meus ouvidos o seu bafejar, suas palavras sussurradas, “filho passei por aqui” … Suas palavras seriam, pois, minha única certidão de nascimento. Renasceria de novo de Seu verbo Criador, alcançaria a redenção e não transitaria mais entre o bem e o mal…
Quero ouvir sua voz cuja sonoridade traz a mais inefável e a mais transcendental paz espiritual…
Senhor, mas acima de tudo e apesar de tudo o que me vem à mente e aflige meu espírito, perdoa meu pecado original de pensar e essa incorrigível necessidade de procurá-lo de todas as maneiras possíveis e imagináveis. Perdoa Senhor por buscar a sua face, por buscar juntar partes de Seu mosaico, por querer ouvir a Sua voz e o Seu verbo, perdoa meu pecado de buscá-lo.
Senhor, Senhor seja a luz em meu caminho e tende piedade de mim!
Abílio Borges