A DECOADA
Como as batidas de um coração, todos os anos as águas enchem (sobem) e esvaziam (descem) no Pantanal e é isso que faz com que este fantástico ecossistema abrigue tanta vida, tornando-se tão belo e interessante, nos oferecendo tanta riqueza como os peixes. A esse “ritmo” anual, chamamos de Pulso de Inundação, pulso de cheias e secas. É tanta água que os rios recebem das chuvas nas cabeceiras que acabam não dando conta de drenar. Então, acontece que parte dessa água extravasa dos leitos e inundam os campos.
Na enchente, o contato da água com a terra seca e com as plantas, faz com que haja a decomposição da matéria orgânica ali presente, a chamada “prodiqueira do batume”. Esta “prodiqueira” é promovida pelas bactérias, que são seres vivos tão pequenos que não podem ser vistos a olho nu. Elas são muito importantes, já que são as responsáveis por reciclar a matéria na natureza para que possam ser utilizadas novamente por outros seres vivos.
A água logo começa a ficar escura como chá preto, como se fosse um grande chá de todas as plantas que ficaram dentro da água. A água também fica pior de se beber, cheirando mal, cheiro de coisa podre mesmo; as piquirinhas e as arraias ficam na flor d’água, os peixes começam a ficar ariscos, não pegam isca. Isso que o povo pantaneiro chama de “decoada”, ou “água de decoada”.
Acontece que, para que possam fazer a decomposição (podriqueira), as bactérias precisam utilizar o gás oxigênio presente na água e, quanto mais o utilizam, menos oxigênio fica disponível para outros seres vivos que ali vivem, como os peixes, por exemplo. Além disso, soltam também outro gás, o gás carbônico, aquele que soltamos quando expiramos. Lembrando que praticamente todos os organismos respiram oxigênio e soltam gás carbônico, mesmo na água.
Assim, os peixes começam a ficar todos meio tontos, zonzos com a falta de oxigênio e com o gás carbônico alto. Curimbas, cachorras, pintados, cacharas, sauás, bagres, arraias todos sobrem à superfície começam a “boquear”, tentando pegar o oxigênio que ainda tem na flor d’água, onde a água tem contato com o ar.
Quando a falta de oxigênio é muito grande, chegando algumas vezes a cem por cento, e o gás carbônico aumenta muito (acima de vinte por cento), acontece a mortandade de peixes, pois o ambiente fica muito ruim e eles não conseguem respirar. Às vezes acontece só numa baía, às vezes no corixo também e às vezes, alcança até o rio. Se a enchente for forte, isso tudo vai acontecendo em várias baías e em vários corixos e rios e a “podriqueira” vai se juntando e chegando também no rio Paraguai, o maior rio do Pantanal.
É bom lembrar que a decoada acontece nos primeiros meses do ano, no início da enchente, normalmente entre fevereiro e abril, época também de altas temperaturas, o que acaba ajudando no processo de “podriqueira”, pois, quanto mais altas estão as temperaturas, mais facilmente acontece a decomposição da matéria orgânica.
Outras características só podem ser verificadas nos laboratórios de pesquisa ou com o uso de equipamentos especiais, pois são de difícil ou impossível visualização.
O resultado deste complexo e único fenômeno natural é que pode acontecer a morte de toneladas de peixes, bem como a morte de outras espécies de seres vivos, como insetos, pulgas d’água e os parentes das minhocas (os oligoquetos), que não suportam a falta de oxigênio na água, pois dependem dele para sobreviverem.
Entre os peixes, algumas espécies são mais sensíveis à estas condições, como os peixes de couro (sem escamas) como os pintados, cacharas, bagres, entre tantos outros. O pacu, que tem escamas, desenvolveu uma estratégia para tentar driblar a falta de oxigênio: fica com o lábio dilatado, a fim de tentar facilitar a troca de gases com a atmosfera, e os pescadores o apelidaram de “pacu beiçudo” quando ele está assim.
Como vimos, quando os peixes sobem à flor d’água em busca de oxigênio para respirar, diz-se que eles estão “boqueando” e, neste momento, ficam meio bobos, sendo facilmente capturados.
Algumas pessoas se alimentam dos peixes pegos nessas condições, apenas se eles estão ainda vivos. Outras, não. Se já estão mortos, não costumam ser consumidos, uma vez que não se sabe quanto tempo estariam nessa condição.
Com a colaboração de Debora Calheiros
Maria Helena Andrade possui doutorado em Ecologia pela Universidade de São Paulo-USP (2011) e mestrado em Ecologia e Conservação pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (1999). Atualmente é professora associada da UFMS, na Faculdade de Engenharia, Arquitetura e Urbanismo e Geografia – FAENG. Tem experiência na área de Ecologia de Ecossistemas Aquáticos, com ênfase em Macroinvertebrados bentônicos e índices de qualidade de água. Estuda as questões relacionadas ao planejamento ambiental e tem experiência, como técnica, em elaboração de Plano Diretor. É defensora e atua na causa indígena.