O Brasil faria mais negócios com os países árabes se os conhecesse melhor. Se fosse um país, a Liga Árabe, com 424 milhões de habitantes, seria o terceiro mais populoso do mundo, atrás apenas da China e da Índia.
Mesmo não sendo uma só nação, o bloco é o terceiro maior parceiro comercial do Brasil. Perde só para a China e para os EUA. Em 2019, esse contingente comprou US$ 12,2 bilhões de mercadorias brasileiras (alta de 6,3% em relação a 2018). E poderia ter consumido ainda mais, segundo Rubens Hannun, 68 anos, presidente da Câmara de Comércio Árabe-Brasileira. Sua missão é intermediar as relações entre o Brasil e o Mundo Árabe. Isso inclui articular reuniões com integrantes de governos e empresários, lidar com o preconceito em relação aos árabes — e, claro, administrar o desconforto que o atual presidente do Brasil provoca nas nações de maioria muçulmana. Nesta entrevista exclusiva à DINHEIRO, Hannun, descendente de sírios e libaneses, destacou a importância do Mundo Árabe para o agronegócio brasileiro e a busca por investimentos internacionais por parte das nações da liga.
DINHEIRO — Quando e como começou a relação comercial do Brasil com os países do Mundo Árabe?
RUBENS HANNUN — A relação vem de muito tempo, mas começou a tomar corpo nos anos 1980, na esteira da crise do petróleo, quando os países árabes começaram a trocar combustíveis fósseis por itens de que necessitavam com nações consideradas amistosas. O Brasil, por sua tradição diplomática não beligerante, sempre foi visto como um país amigo. A crise do petróleo criou, por exemplo, uma excelente oportunidade para a Embraer exportar aviões às nações árabes.
E essas oportunidades foram se expandindo para outros setores.
Exato. Na sequência, empreiteiras brasileiras foram chamadas para fazer ferrovias no Iraque, a Arábia Saudita começou a demandar frango halal produzido nos frigoríficos brasileiros num processo compatível com as tradições do islamismo. Hoje, o Brasil é o maior exportador desse tipo de produto no mundo. Apenas no ano passado, os países árabes compraram quase US$ 2,4 bilhões de frango do Brasil. À medida que essa relação comercial evoluiu, o Brasil passou a importar quantidades cada vez mais relevantes de produtos das nações árabes, como combustíveis, fertilizantes e minerais fosfatados — aliás, um produto muito importante, pois permite a correção de solo e a nutrição de aves e bovinos no Centro Oeste nacional, cujo solo carece desses nutrientes.
Então é possível afirmar que o Mundo Árabe ajudou o Brasil a se tornar uma potência global do agronegócio?
Certamente. Os árabes ajudaram o Brasil duplamente a se tornar o celeiro do mundo, como fornecedores de um insumo essencial, que determina a competitividade das cadeias produtivas do agronegócio, e como compradores da produção. Se fossem um país, a Liga Árabe, formada por 22 nações, do Oriente Médio e do norte da África, seria o segundo maior mercado para o agronegócio brasileiro e o terceiro parceiro comercial do Brasil, atrás apenas dos Estados Unidos e da China. Em 2019, as exportações brasileiras à Liga Árabe somaram US$ 12,12 bilhões. As vendas árabes ao Brasil também avançaram e hoje giram em torno de US$ 7 bilhões. Os árabes demandam do País grandes quantidades de carne de frango, açúcar, carne bovina, soja, milho, frutas, lácteos. Além disso, empresas árabes estão presentes no Brasil. A DP World, de Dubai, controla um dos maiores terminais do Porto de Santos. A Qatar Holdings tem participações na Latam. O fundo saudita Salic tem posições no frigorífico Minerva. Com os árabes, o Brasil estabeleceu relações comerciais benéficas a ambos os lados.
Há espaço para essa parceria comercial seguir crescendo?
Sim. Há muito espaço para isso. Eu diria que essa relação ainda está longe de alcançar todo o seu potencial. Há pouco mais de um ano, a Câmara Árabe fez um estudo para avaliar o potencial de expansão de comércio com o Brasil. Na atual pauta de exportações, podemos perfeitamente sair dos atuais US$ 12,2 bilhões para US$ 20 bilhões em quatro anos (o que representaria uma alta de quase 70%), intensificando, por exemplo, ações de marketing, investimentos produtivos e otimizando a logística. Se incluirmos outros produtos cujo comércio ainda não é tão grande, podemos ir muito além.
O presidente do Brasil tem se colocado sempre ao lado de Israel em questões diplomáticas, se opondo aos interesses da comunidade árabe. Chegou a cogitar a transferência da Embaixada Brasileira em Israel de Tel Aviv para Jerusalém. Essa postura afeta os negócios do Brasil com o Mundo Árabe?
A tradição não beligerante da diplomacia brasileira foi essencial para que os países árabes abrissem seus mercados ao Brasil, nos anos 1980. E o desenvolvimento das relações comerciais nos anos subsequentes ocorreu porque, além da imagem de nação pacífica, o País soube cultivar um ambiente negocial amistoso, no qual agentes dos dois lados puderam construir confiança e trabalhar com previsibilidade diplomática. Mas algumas situações geram, sim, incômodo. As nações árabes não se sentiram bem, por exemplo, quando o presidente do Brasil falou sobre levar a Embaixada para Jerusalém, cidade sagrada a judeus, cristãos e muçulmanos. Até porque essa postura contraria a posição diplomárica que o Brasil sempre teve. Cria ruídos. É difícil mensurar as consequências efetivas que uma atitude assim traria. Para o Brasil, criar barreiras na relação com os países árabes também não seria bom negócio. Mas esse mal-estar passou e as coisas voltaram ao normal.
De um modo geral, quais as maiores dificuldades que o bloco encontra no momento de negociar com nações que não são árabes?
Leva certo tempo até que as pessoas e, principalmente, as empresas que não conhecem os árabes percebam e valorizem os aspectos positivos das relações com eles. Os árabes, com frequência, são retratados de forma estereotipada. Mas há muitas coisas boas. Entre elas, a fidelidade ao parceiro comercial, a eterna disposição para a negociação e a necessidade de fazer negócios em termos justos numa visão de longo prazo. Certamente, o Brasil faria mais negócios com os países árabes se os conhecesse melhor. Talvez, as demais nações também. Seguindo esse raciocínio, a Câmara Árabe faz, frequentemente, pesquisas que ajudam empresas a traçar estratégias comerciais com os países do bloco. Só recentemente os árabes têm tido a oportunidade de ampliar a comunicação com o resto do mundo e trabalhar, eles mesmos, sua imagem.
A Copa do Mundo do Catar, em 2022, vai ser importante nesse sentido?
Assim como a Expo 2020, em Dubai. Esses eventos são grandes esforços de relações públicas, que têm o objetivo de gerar novas percepções sobre os árabes, mais próximas da realidade e mais longe dos estereótipos. E, certamente, vão contribuir para a expansão dos laços comerciais com todo o mundo.
Cada vez se fala mais em sustentabilidade, energia limpa, redução dos combustíveis fósseis. Como os países árabes, grandes produtores de petróleo, encaram essa questão?
O Mundo Árabe já está atuando para fazer uma transição segura e eficiente de suas economias para a era pós-petróleo. Essa transição será baseada em muito investimento, principalmente em educação, pesquisa científica e no desenvolvimento de atividades produtivas sustentáveis. Na Arábia Saudita, por exemplo, o governo está viabilizando aportes bilionários de grupos internacionais em complexos turísticos no Mar Vermelho, uma das regiões mais lindas do mundo. Além de construir hotéis, o projeto saudita contempla o desenvolvimento de pesquisas na biodiversidade, tratamento integral de resíduos e a geração de energia elétrica por turbinas eólicas. O que os árabes estão fazendo é muito mais do que buscar uma forma de desenvolver suas economias. A ideia é fazer isso com sustentabilidade e visão de longo prazo que os posicionem na dianteira do protagonismo do século 21.
Que tipo de investimentos empresas brasileiras estão fazendo nos países árabes?
Nos 68 anos da Câmara Árabe, vimos todo tipo de empresa — e de todos os portes — ser bem-sucedida nos países árabes. A maioria delas vem do agronegócio. Há exemplos de companhias gigantescas, como BRF e Marcopolo, mas também há casos de muito sucesso de empresas menores que exportam ao bloco, como confecções, fabricantes de sorvetes e de calçados, produtores de frutas e de pedras artesanais, construtoras, fabricantes de armamentos, de máquinas agrícolas. As possibilidades são muitas.
Que espécie de projetos e alianças os países árabes gostariam de articular com o Brasil, mas ainda enfrentam obstáculos?
Há interesse em três áreas centrais: segurança alimentar, logística e infraestrutura. Existe potencial para estruturar alianças de capital misto em empresas de alimentos. Mas os árabes também desejam aportar recursos em concessões e infraestrutura que facilitem e barateiem o acesso a alimentos. As nações do bloco querem levar para seus territórios todo o tipo de investimentos. Em vários países há políticas de criação de Zonas Francas, muitas delas conjugadas com polos de pesquisa tecnológica, caso da Zona Franca de Suez, no Egito. Os brasileiros precisam conhecer essas oportunidades e saber que, se desejarem aproveitá-las, serão apoiados.
O bloco árabe possui cerca de US$ 2,3 trilhões de recursos disponíveis em fundos soberanos. O que o Brasil precisa fazer para ter acesso a parte dessa verba?
Os fundos soberanos árabes detêm 40% do capital mundial alocado atualmente. São recursos que os países já utilizam para semear o futuro, para desenvolver iniciativas econômicas sustentáveis, o financiamento de startups e projetos com finalidade de assegurar o acesso a alimento. Esses fundos têm como característica a preferência por atividades produtivas. Eles não querem só ser sócios no negócio. Querem participar da produção. É preciso lembrar que na cultura islâmica cobrar juros é proibido. A ideia de investir está fortemente associada a compartilhar os resultados de uma atividade produtiva. É preciso um bom projeto produtivo, que faça sentido nos objetivos estratégicos dos fundos e dos países árabes por eles responsáveis.
Como a pandemia da Covid-19 afetou o Mundo Árabe e suas relações comerciais?
Os árabes ficaram muito preocupados com a possibilidade de o comércio de gêneros alimentícios com o Brasil ser interrompido por causa da pandemia. Cada um à sua maneira agiu para reforçar seus estoques e se preparar para um possível cenário de escassez. Os Emirados Árabes, por exemplo, credenciaram novos importadores a buscar alimento onde quer que houvesse disponibilidade e lançaram mão de reservas internas para ampliar seus estoques. O Egito habilitou, de uma só vez, quarenta e duas plantas frigoríficas brasileiras, muitas delas pela primeira vez, para permitir a importação de mais carne de boi e de frango, em ações que certamente beneficiaram o Brasil, ao garantir (e talvez até gerar mais) empregos de milhares de pessoas que atuam em plantas frigoríficas nesse momento tão delicado.
Por Klester Cavalcanti – IstoÉ Dinheiro