Aqui o tempo amanheceu fechado e alguns ralos pingos de água não foram suficientes para alçá-los à condição de leve garoa.
O sol não apareceu para o café da manhã. Esconde-se por trás de um milhão de nuvens. Brilha radiante, é certo, em outras latitudes.
Não venta, porque há ausência de calor e o que se percebe é um grande silêncio, só quebrado pelo canto tímido de alguns pássaros. Cachorros não ladram por estarem entocados, buscando refúgio do frio. Nem o gado dos vizinhos muge nessa aurora fria.
É como se a realidade e o dinamismo dos elementos e de todas as coisas fizessem uma pausa, como um monge que silencia para meditar.
A natureza e o tempo, tolhidos pelo pudor, estão receosos em se manifestar. Parecem preferir o silêncio, pensar que a noite se dividiu em duas: a parte escura, cujo breu já se findou, e a parte clara, porém nublada, como acontece nas noites próximas dos polos norte e sul do nosso planeta. Lá, nas extremidades norte e sul da terra, no inverno ou no outono, o sol não aparece e o que se vê é uma penumbra permanente que dura meses ininterruptos.
Hoje, por aqui, até o presente instante, a estrela mãe sequer deu um suscinto olá ou mesmo um tímido oi. Essa manhã lembra-nos aquelas noites polares mais longas, onde o sol se nega a mostrar-se de maneira plena.
Hoje é o terceiro sábado de julho e a última frente fria esteve por aqui há três sábados atrás, durando, em sua temperatura mais baixa, até a segunda e quarta-feira seguintes.
Nesses dias geou de maneira severa. No entanto, o frio permaneceu por volta de uma semana inteira. São momentos de repouso solene da natureza, como fazem os judeus nos seus santos sábados.
Nos dias seguintes, somente os finais de tarde, as noites e inícios de manhã permaneceram frias. Dessa vez, ao que parece, não será diferente. Teremos uma semana sabática para temperaturas mais altas, ou seja, não teremos dias acima de 20 graus. Os vegetais hibernarão para se protegerem de alguma maneira. Suas raízes se agarrarão com firmeza no solo e no subsolo, procurando cada molécula de água para resistirem ao frio e à secura da estação. Suas folhas diminuirão o inspirar do gás carbônico e o exalar do oxigênio.
As folhas aos montes, no chão do quintal, realmente parecem mortas, não esboçam nenhuma reação, não se movem. Lembram um cardume de pequenos peixes mortos, deixados na areia da praia pela maré alta. Mesmo desgarradas de seus galhos e árvores, mesmo espalhadas pelo chão, desidratadas e amarelecidas, parecem vivas, quando animadas pelos ventos. Parecem brincar umas com as outras, parecem apostar corridas pelo quintal. Mudam de lugar permanentemente, ora saindo em correria de debaixo de uma determinada árvore e parando debaixo de outra, logo à frente. Parecem até brincadeira de pega-pega e, então, elas correm até o pique e ali permanecem a salvo de seu pegador.
Hoje é diferente, ou ainda dormem um sono tardio ou estão a brincar de maneira diversa, brincando agora de estátuas. As folhas das árvores se parecem a eternas crianças, não parecem envelhecer, não importando se estão nos galhos de suas respectivas árvores ou no chão a formatar tapetes multicoloridos.
É a natureza se despindo de suas vaidades, disse-me uma amiga, a quem faço questão de guardar como tesouro raro, no lado esquerdo e quente do peito. É a natureza desnudada pelos dedos gelados do frio, dando asas à inspiração de quem a contempla sem pressa.
Na verdade, somos todos folhas à deriva…
Uma pomba, em algum lugar da mata, ressoa seu triste canto como um lamento. U-uhuu, u-uhuu, u-uhuu u-uhuu é o seu mantra recorrente. Essa repetição se alonga por uma penca de minutos. É como se chorasse a morte de alguém próximo ou padecesse de algum infortúnio do destino ou mesmo sentisse saudade de alguém a quem se ama muito.
Na verdade, talvez seja exagero meu… pode ser apenas a maneira singular de comunicação entre as pombas juritis. Seria natural, à distância, pensar que seja só isso mesmo e nada mais… Porém, quem de perto ouve, é verossímil imaginar dramas de sua existência já que seu canto emociona, tem algo de romântico, traz certa tristeza, é poético, desperta sensibilidade em seu ouvinte, suscita nossa compaixão.
Um anu negro canta ao longe do meio de moitas de capim jaraguá, próximo do córrego. Estão caçando insetos para seu desjejum. Está avisando seus pares para que não se distanciem muito dele, não o deixem para trás, já que voam em pequenos grupos. A caça dos anus aos mais variados insetos parece algo divertido de se ver, pelo menos do ponto de vista de nós humanos ou do próprio predador, mas nunca do ponto de vista dos pequenos insetos em pânico.
Os anus se embrenham em moitas espinhosas ou de capins atrás de grilos, pequenas borboletas, mariposas que fogem em pequenos saltos e, então, quando ele se aproxima, com seu bico negro, o inseto dá outra escapada, fazendo o pássaro brecar, saltar num frenético zigue-zaguear de ponto em ponto, e, então, a perseguição se prolonga até o êxito ou o malogro do perseguidor.
Nesse ínterim, o restante do grupo se distancia aos poucos, fazendo com que o retardatário, ao perdê-los de vista, chame pelos demais e, então, ouvimos o seu piado.
De bem longe chega o barulho de um pequeno avião, um monomotor que conhecemos pela alcunha de teco teco. Ouço-o por pouco mais de um minuto e, então, seu ronco caminha no firmamento e, gradativamente, silencia, conforme se distancia no horizonte até se tornar inaudível.
Por ser ainda de manhã, certamente, voltarei, no final da tarde, a ouvir o ronco de seu motor, no retorno ao seu ponto de partida. Certos aviões fazem coincidir a sua rotina, com horários fixos de vôo, assinalando a passagem do tempo, os inícios e finais dos dias.
É um outro pássaro a singrar nuvens baixas, pássaro artificial, cujas asas e envergadura são metálicas e bem maiores que as dos demais seres biológicos. E, à maneira dos pterossauros da pré história, são ágeis, porém não muito resistentes aos ventos fortes. Portanto, hoje os céus sem ventos, sem nuvens apressadas, são céus de brigadeiro para o pequeno teco teco.
Agora, parece que uma leve brisa toca de leve, com receio de assustar, as folhas e os galhos das árvores mais altas. Talvez seja um sutil modo de carícias como preliminares sem pressa, uma maneira delicada de dizer, talvez, que, apesar da pequena ereção matinal e do desejo latente, ainda repousa com preguiça para a paixão agitada, que prefere continuar cochilando no frio da manhã, que carece esquentar, pouco a pouco, até o meio do dia, quando, então, aí, se portará de maneira mais viril e intensa, de maneira mais selvagem, fazendo todas as folhas se agitarem, saciando todos os desejos e fantasias das árvores, feito mulher fogosa e bem resolvida, inteiramente entregue ao amante e às artes da paixão e da sublimidade do amor…
Na verdade, guardadas as devidas diferenças, parece já ser noite, apesar de ter amanhecido, apesar da luz. Tudo permanece silencioso e quieto. Pouca coisa se manifesta.
Assim também permaneço sentado, depois de alimentar galinhas e patos.
Sentado, com esse breve relato, dou o meu bom dia a toda natureza que atento, observo e contemplo, nessa manhã fria, em que o sol se recusou a aparecer para dividir comigo um quente café da manhã.
Bom dia, amigos!
Abílio Borges