As Borboletas e a Mulher

Ele vivia sozinho no paraíso, observando leões e leoas no cio e como elas se contorciam na relva frente aos seus machos que as observavam tensos e sedentos, lânguidos de desejos.

Observava os corcéis que relinchavam estridentes, davam coices no ar invadidos pelo sentimento de euforia, seus olhos pareciam querer saltar de suas órbitas, o sopro quente de suas narinas exalava certa exasperação prazerosa, ostentavam muita virilidade e a confiança inabalável neles mesmos, corriam garbosos em todas as direções do campo aberto e pelos prados e planícies abaixo tão logo finalizavam o coito com suas fêmeas. Pareciam festejar a vida!

Olhava os céus e via as águias, em pares, se pegando em pleno voo e soltando piados agudos de satisfação.

Porém, somente ele não tinha a sua contraparte, a sua companheira e por conseguinte, desconhecia aqueles sentimentos e aquelas sensações que pareciam atordoar aqueles que as experimentavam, sentia-se, pois, deficiente e incompleto. Andava desacompanhado, permanecia sozinho, seu semblante era cansado e triste.

Ele havia despertado de um longo sono vespertino, tão profundo e reparador como jamais tivera, parecia-se a um sonâmbulo vagando entre folhagens e flores, permanecia sonolento ainda. Havia uma energia diferente naquele meio de tarde no paraíso, algo indefinível e indecifrável. Sentia-se então, sobremaneira intrigado e o sentimento de solidão tomava-lhe por inteiro sua alma. Perambulava melancólico sem saber definir aquele sentimento novo, totalmente inédito. Sentia falta de algo que jamais tivera. Milênios depois, esse sentimento seria chamado de saudade.

Ele andava lento e escolhia veredas sem nenhum propósito, carecia de motivações mais profundas em seu ser, não sabia o que era o entusiasmo, o frenesi interior, a expectativa, os momentos de êxtase e os sonhos. Seus dias eram monótonos: O amanhecer não lhe trazia motivações, o entardecer deixava-o melancólico e o anoitecer entristecia-o, fazendo sentir-se mais solitário ainda, seu semblante continuava cansado e triste.

Agora parecia ouvir cânticos vindos de todos os quadrantes, como se fossem um coro dos seres iluminados que, de vez em quando, avistava flutuando pela superfície da terra ou nos céus ou eram o linguajar das árvores? Elas eram tantas e tantos eram seus tamanhos, cores e formatos! Era o que se perguntava. A impressão que tinha é que as próprias árvores cantavam embaladas por uma suave e persistente brisa que soprava em todas as direções e também lhe tocava, como carícias frescas, sua face e cada parte de seu corpo desnudo.

Dizia de si para si mesmo, perguntava-se, da onde vem esses cânticos? Quais seriam os outros seres donos desses sussurros melódicos que ressoam de todas e para todas direções e que nunca ouvi antes? São tantos os seres nos arredores e ademais há uma grande multidão de pássaros que gorjeiam em idiomas os mais diversos! Seria de algum animal que ainda não conheço?!

Havia uma energia nova em seu âmbito e nas proximidades, ouvia pela primeira vez a música da natureza e os sons poéticos e primordiais reverberavam nas encostas das serras, nos baixios e por entre o arvoredo frondoso do bosque. Aquele homem confuso, inexperiente e ingênuo não imaginava a complexidade e os propósitos das mais poderosas e sutis energias em ação, naquele instante, oriundas das mais remotas latitudes e longitudes do mundo.

Subia do solo uma rala neblina em direção à copa das árvores, impregnando ainda mais o ambiente de incógnitas. A sensação de solidão se adensava devido a tristeza que essa névoa trazia aos espaços vazios. Ela se espalhava entre os troncos das grandes árvores e as mais distantes sumiam da vista de quem olhava para mais longe. Trazia aquela sensação fantasmagórica dos pântanos extensos cujo fim se desconhece. Foi observando esse cenário, quando tentava definir de quais animais eram os vultos que apareciam tênues e logo em seguida desapareciam nas sombras de seu horizonte próximo, a lembrar miragens, que ele se viu surpreendido por uma criatura que até então desconhecia.

Vagava lento com seu semblante decaído, ora curioso, ora distraído, quando de repente, num súbito instante, num mágico momento, se viu catalisado por uma enorme borboleta azul que saiu da bruma, daquelas grandes, cujos voos imprecisos pareciam contemplar, aqui, ali e acolá, cada flor daquele imenso bosque! Ela buscava à luz, buscava se guiar pelos raios de sol que conseguiam se insinuar por entre as frestas das folhas nas copas das árvores e atingiam o solo em feixes que refletiam mais ainda o azul metalizado de suas asas. Suas asas eram tão grandes como as orelhas dos enormes elefantes, mas tão leves como as plumas, cujas brisas levam-nas para passear nas alturas e para bem longe. Voava em zigue zague guiando o seu olhar encantado por onde suas enormes e belas asas apontavam, a cada instante, para direções imprevistas.

Passou então, a segui-la, desajeitado e trôpego. Hipnotizado, nada mais importava para ele. Perdeu a noção de espaço, já não sabia o quanto havia caminhado, perdera a noção de quanto tempo havia se passado desde quando começará a segui-la… Luz, sombra, névoa, calor, frio, espinhos a espetá-lo, nuances e tropeços no terreno eram detalhes que já não percebia. Ela voava à direita e à esquerda e em frente, nas direções de seu impreciso intento e ele a seguia como um autômato embevecido por suas cores, sua graça e beleza únicas.

Ele sentia-se etéreo, tinha a impressão que também voava, não sentia o chão sob seus pés, parecia submergido num sonho atemporal, ambientado apenas por aquela criatura alada e pelos cânticos que ressoava em todas as direções. O mundo inteiro parecia resumir-se apenas àquela borboleta azul!

No momento em que o encantamento o deixava com sua boca entreaberta e seu olhar vidrado e catatônico, a mais azul das borboletas que já vira, o azul mais luminoso e belo a adentrar a retina de seus olhos, ela se deteve no ar e mudou repentinamente, mais uma vez, de direção. Alçou voo e recuou na direção reta de seus olhos como se fosse atingi-los de frente! Quando parecia eminente o contato, ela passou do lado de seu rosto quase o tocando. Ele sentiu, na sua passagem, a fugaz brisa do abanar de suas asas roçando sua face, num quase beijo. Ele sentiu-se acarinhado e uma sensação de paz perpassou seu espírito por inteiro. Seu coração quase lhe saiu pela boca, quase derreteu-se como manteiga ao sol de tanta ternura sentida, ele então inspirou profundo, suspirou lento e por fim, sorriu… Nesse ínterim, ela embrenhou-se num emaranhado de arbustos de primaveras multicoloridas e desapareceu envolta também pela névoa que a tudo encobria como um manto diáfano.

Ele recobrou sua presença de espírito, se recompôs e voltou a si com rapidez, num giro, para não a perder de vista. Foi então que se viu, frente a frente, com a mulher, a primeira mulher sobre a terra que seus pés já pisaram e que seus olhos viam! Era a sua contraparte! Era linda, tão bela, esplêndida e encantadora quanto a borboleta de imensas asas azuis que sumira! Suas pernas tremeram, ele caiu de joelhos aos seus pés. Só aí sentiu que estava às margens de um pequeno, silencioso e manso riacho de águas translúcidas. Estava com a metade inferior de seu corpo molhado. Sentiu, então, os pedregulhos pressionarem a sola de seus pés. Confuso, atordoado, com sua epiderme toda arrepiada, se perguntou se era um ser para ser… adorado. Se, por acaso, não era ela que cantava?

Ela, por seu lado, o fitava com seus olhos grandes e fixos de águia, sem expressar nenhuma surpresa. Não trazia tristeza ou alegria, espanto ou entusiasmo em seu rosto bonito. Sua figura emanava apenas a serenidade das águas mansas de um manancial represado cuja superfície desconhece ventos fortes. Seu porte era esguio, imponente e cheio de curvas. Notou um pequeno chumaço de pelos entre suas pernas e duas protuberâncias logo abaixo dos ombros a lembrar o formato de peras. Seu corpo era envolvido por um halo de luz, uma glória emanava dela da mesma maneira que emanava daqueles seres iluminados, que, de vez em quando, flutuavam pelas matas, serras e bosques. Ela perdera, inexplicavelmente, o azul, as asas e se tornara maior e densa, constatou ele. Agora, ela assemelhava-se mais a ele, do que, com qualquer outra criatura que já conhecera. Ela o fitava e também percebia que o contorno de seu corpo emanava luz, uma glória desprendia de seu âmbito, mas ele próprio não notava que possuía essa característica corporal, que tinha luz em si. Ele percebia luz nela e ela notava luz nele, mas nenhum deles percebiam a própria glória.

Mesmo depois, passado muitos anos, jamais se convenceu de que a mulher nascera de uma parte sua, de que descendiam da mesma matriz…

A mulher era a metamorfose encantada e poética da mais bela borboleta que voara livre, em voos imprecisos, sobre o colorido das flores, e que, na sua passagem, desencadeava a inebriante fragrância de um cheiro agradável, a lembrar hormônios, que inundava o ar daquele jardim, que, dali por diante e para sempre, não seria somente dele.

Para ele, portanto, a mulher descendia de uma enorme e rara borboleta azul iluminada, que, num privilegiado e único instante, numa tarde morna e sonolenta, interagiu com a musicalidade alquímica e poética sussurrada pelo sopro primordial dos misteriosos elementos do gênesis, e que, o encantaria para sempre…

Abílio Borges